A escrevivência de hoje brota do incômodo
com a pretensa universalidade da palavra mulher, disseminada por #belarecatadadolar, hashtag surgida espontaneamente na internet após a publicação de matéria da Revista Veja sobre Marcela Temer, esposa do vice-presidente Michel Temer. Brota do compromisso com o feminismo interseccional e sua
aposta metodológica de pensar o caráter de simultaneidade das opressões de
raça, gênero, sexualidade, classe... Brota da decisão política de não aderir ao protesto porque, mais uma vez, assistimos à emergência de uma mobilização que desconsidera as implicações que a
história do trabalho doméstico representa na vida de nós, mulheres negras, cis
e transgêneras. Que fique escuro, não sou contra o protesto em si, que, aliás conta com a participação de muitas feministas negras e brancas as quais respeito bastante. Também reconheço que a apropriação da hashtag tem funcionado como uma contra-ofensiva frente às pregações em prol da tradicional família brasileira, corriqueiras na votação da Câmara de 17/04, que deliberou favoravelmente à continuidade do processo de impeachment da Presidenta Dilma Roussef no Senado. Compreendo a relevância desta catarse coletiva. Entretanto, levando em conta o momento político que vivemos de
ameaças às conquistas alcançadas pelas classes pobres, tal campanha - se é que podemos considerá-la assim (já que não conhecemos as idealizadoras e os objetivos propostos) - requer mais
cuidado e compromisso com a história das relações raciais no país. Como
ressaltou Ana Flavia Magalhães Pinto ao explicar sua adesão ao protesto, precisamos investir na “politização dos espaços sociais”.
Por isso, sou preta, insubmissa, do lá.
Fonte: Site da Uol
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Desde o estudo pioneiro da feminista
afro-americana Kimberlé Crenshaw, sabemos da
importância de pensar e agir contra as opressões de forma articulada, ou como
se tornou moda falar de maneira intersectada. Digo moda porque
observo que a interseccionalidade apesar de bastante citada, é pouco
praticada nos círculos feministas. As contribuições inestimáveis de ativistas trans organizadxs em coletivos como o Prepara Nem, curso preparatório para o
Enem voltado para pessoas trans e em grupos como Negros
Blogueiros têm sido cruciais para o fortalecimento dos pontos de vista interseccionais em escolas, movimentos sociais e universidades.
Fonte: Facebook
Ao longo de 2015, assistimos à emergência
de #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto. O fato de ambas representarem
campanhas que ganharam a cena nas redes sociais é inspirador para pensarmos na
força dos feminismos. Em uma sociedade patriarcal como a nossa o fato de
mulheres serem autoras de blogs, reconhecidas como
intelectuais públicas com milhares de seguidorxs deve ser lido como uma
política de enfrentamento ao machismo que tanto afeta a nossa existência,
especialmente em momento político de conservadorismo diante de questões tão
caras para nós como a legalização do aborto, a regulamentação da prostituição e o fortalecimento dos direitos de saúde e
trabalho para pessoas trans. As barreiras postas para a conquista dessas e de outras pautas denotam que para que tal política de enfrentamento seja de fato insubmissa precisamos
nos esforçar para ler e combater as opressões de forma interseccional. Um primeiro
esforço nessa direção é articular individual e coletivo, refletindo sobre a natureza das fotos que escolhemos para
postar no Facebook. Elas podem ser violentas para muitas de nós. Das que tenho acompanhado, a
maioria traz como protagonistas mulheres brancas na pegação, tomando cerveja,
dançando funk (“chão, chão, chão”), fazendo nudes na praia... Essas representações
que já ganharam status de “clássicas” dizem respeito a
experiências assimétricas de gênero e raça na sociedade brasileira. Certamente
por isso, ainda que intelectuais negras, como MC Carol tenham aderido, a mobilização é a olhos
nus hegemonizada por mulheres brancas de classes média e alta,
dentre as quais muitas "famosas". E isso deve ser pautado.
Fonte: Facebook
Precisamos falar sobre o fato que quando você branca dança funk até o chão vestida de noiva na festa
de casamento você informa que naquela noite está tudo “dominado”, ops,
liberado. Mas que no dia seguinte, quando descer para tomar café no Copacabana
Palace com o maridão, será servida por uma copeira preta e o funk não fará mais parte da sua vida.
Afinal, é “som de preto e favelado” e suas malas para lua-de-mel nazEuropa já
estarão prontas. Também é necessário comentar que a sua foto enchendo a cara com
cerveja orgânica será lida não como alcoolismo ou patologia “inerente” à raça
negra, mas como um momento de exceção à vida recatada e previsível pela qual
você se tornou conhecida, admirada e respeitada. Sobre o seu nudes, ele não fará com que te associem automaticamente à Mulata Globeleza os 365 dias
do ano. Provavelmente, seus belos seios à mostra também não serão lidos como
estímulo ou consentimento para passadas de mão na sua bunda com biquíni da Lenny. E sua foto dançando em
roda com mulheres indígenas nuas da cintura para cima enquanto você, Letícia Sabatella, "protege"
o corpo caucasiano vai ser ovacionada como um exemplo feminista. Um ícone da
campanha ainda que as "nativas" do nada democrático círculo não tenham sido, ao
que tudo indica, consultadas sobre a veiculação de suas imagens, que por respeito a elas não reproduzirei aqui. Eis o ponto a que chegamos: o corpo das
mulheres pretas (e indígenas), o lugar destinado a eles no Brasil e noutras
sociedades pós-escravistas. Este lugar de sexualização, objetificação e
desumanização faz com que para muitas de nós os adjetivos “bela”, “recatada” e
“do lar” sejam metas que queiramos alcançar. Há alguns anos publiquei um artigo
no Cadernos Pagu que discutia justamente os sentidos
transgressores que ideais aparentemente conservadores podem assumir dentro de
processos de racialização de gêneros e de luta por "respeitabilidade".
E agora, que tal definirmos nos nossos
próprios termos os “lás” nos quais queremos estar?
PRETA: Somos consideradas feias.
Com nossos beições, cabelos duros e bunda grande ganhamos, quando muito, o status de “comíveis”. Em alguns casos, que
podem ser exemplificados por atrizes negras contratadas pela TV Globo, somos
"pretas bonitas", por sermos fitness,
termos feições finas, pele clara e cabelo crespo com cachos "soltos",
que “enrolam de verdade”. Em outros casos, mantemos relações afetivas durante
anos com homens que não nos assumem por vergonha de nossa raça. Nas escolas
públicas, multiplicam-se relatos de meninas submetidas a violências como
escaldar a pele com água fervendo, acreditando que assim tornar-se-ão brancas. Entre as pessoas trans, os mais altos índices de violência e desemprego recaem sobre as negras. Por tudo isso e muito mais, a nossa luta tem sido a de conferir significados de
afirmação racial ao ser bela muito além dos traços físicos, movimento atestado
pela multiplicação de vlogueiras com canais de beleza negra na internet
INSUBMISSA: Somos vistas como despudoradas e
indecentes. A sensação que experimentamos é que, a despeito do que se faça, tais
estereótipos sempre nos rondarão, seja na forma da "empregadinha
gostosa" ou da professora Globeleza da universidade.
Duas imagens que por sinal dialogam com a crítica da de Monique Prada à preconceituosa e irreal separação
entre mulheres que trabalham com o corpo. Mulheres que trabalham com a mente.
Mente e corpo fazem parte de um mesmo todo, que somos nós em nossas muitas
existências. A professora Giovana ao escolher com que roupa vai para a
universidade usa seu corpo. Trabalha com sua mente (Que peça escolher para que
eu seja chamada pelo meu nome e não por psiu? Para que eu seja reconhecida como
professora e não como estudante ou auxiliar de serviços gerais? Que tamanho de
saia garantirá que meus colegas não fiquem à vontade para me tocar enquanto
falam comigo?). Todo este esforço intelectual e corporal da professora Giovana
é experimentado pela prostituta branca Monique quando ela precisa decidir que roupa
vestirá para ir
trabalhar no encontro
agendado com o cliente X. Mas este assunto – das relações entre mulheres e
prostituição é matéria para “textão”, como ouvimos por aí. O fato minha
gente é que como pretas e indígenas não temos sido lembradas pela discrição, pelo recato e
pela singeleza. A imagem produzida sobre nós é a da devassidão moral então
não é absurdo pensar que para muitas a condição de "recatada” - de ser lida como
respeitável - é uma experiência que gostaríamos, ao menos de saber como é. O
olhar interseccional para o recato ajuda a pensar em privilégios de
raça. Contribui também para percebermos que tal desejo para mulheres negras
pode ter mais a ver com insubmissão do que com normatização. A regra para as
pretas - estão aí as estatísticas que não nos deixam mentir - é a do
trabalho doméstico, da terceirização, da liderança solo de famílias, das mortes por
abortos clandestinos. Repito algo que já escrevi por aqui: na história oficial
não somos nós as “mães gentis” dos “filhos deste
solo”.
DO LÁ: Tendo sido criada por uma avó que foi empregada doméstica
boa parte da vida, cresci ouvindo e sendo ensinada a aprender os “serviços que
uma menina deve saber desde criança” (lavar, passar, engomar, cozinhar, coarar
roupa, encerar chão, arear panelas...). Com base nessa escrita de si, foi muito
impactante ouvir da mãe de uma amiga branca que “para mandar na empregada” era
“preciso” que “a gente soubesse fazer”. Em resumo: passei a vida sendo ensinada
a trabalhar e obedecer às futuras patroas dentro de um destino esperado para
mim e que minha própria família ajudou a romper. Já minha amiga branca recebeu
uma formação das suas para dar ordens. Para ser patroa. E aqui vamos nos poupar
da baboseira de secretaria ou ajudante. Estou falando de ordenar as empregadas
domésticas toda sorte de serviços. Ordenar porque já faz tempo que decidi
encarar a realidade de frente, parando de usar eufemismos suportados pelo
racismo à brasileira e pela falácia da democracia racial. Aprendi isso com
feministas como Rosário Amarante e Sueli Feriziani do grupo Maternidade Interseccional. A
expressão “do lar” relaciona-se muito mais às patroas que exigem do que às
empregadas que aprendem a servir. As categorias (indiscutivelmente machistas)
de “excelente dona de casa”, “mãe de família”, “boa esposa” são altamente
racializadas e racistas. Racializadas porque quando pensamos na “rainha do lar”
quem vem à nossa cabeça é uma Fernanda Lima da vida, com seus gêmeos fofos e
marido gato. Este um moço de sobrenome difícil, loiro de olhos azuis, "cozinheiro" do Gnt. Racista
porque é a mesma Fernanda que como “boa mãe” corre em seu carrão para salvar as
crianças da chuva e deixa para trás as duas babás negras, ao tradicional estilo
"se fode aí". É a junção entre racialização (evidenciar a raça) e
racismo (naturalizar a raça como marcador de desigualdade) que faz com que
atrizes como Carolina Dieckman sintam-se à vontade para postar selfie no Natal com as empregadas
domésticas de Regina Casé. Duas pretas trabalhando uniformizadas para servir o
“lar” de uma “rainha” que em piada nacional de muito mal gosto tornou-se
representante da biografia de milhões de mulheres negras brasileiras.
Essas histórias - das quais eu - de novo - escolho não reproduzir as imagens por entender
que se trata de exposição não consentida de trabalhadoras - baseiam-se em fatos
reais e violentos que esfregam em nossa cara a necessidade de
autoconhecimento sobre o “lá” que nos é imposto e os “lás” que desejamos
alcançar.
***
Há muitas camadas por debaixo da tríade
bela, recatada e do lar. Uma delas são as próprias intersecções entre
matrimônio e prostituição e que, novamente, revelam experiências distintas de sermos
mulheres. Afinal os casamentos “arranjados” e mediados pelos pais de moças como Marcela Temer relacionam-se com a prostituição
de luxo, ao passo que nas periferias e sertões do Brasil, nossas meninas negras
são “entregues” aos homens mais para obedecer (continuar a) do que
para exigir de suas “criadas”. Aliás, ao que tudo indica, Marcela já se tornou
grande mestra das exigências.
Fonte: Twitter
Em termos interseccionais, gostaria de
sentir na pele o mesmo empenho e entusiasmo para colocar na rua campanhas feministas para
denunciar as violências a que estão sujeitas milhares de meninas nigerianas nas
mãos do grupo Boko Haram. Para protestar
contra os estupros das meninas quilombolas de Cavalcante, no Norte
de Goiás ou, para ficarmos com exemplos que
permanecem atuais, torço para ver apoio à luta para que os frágeis direitos das
trabalhadoras domésticas sejam respeitados. Para que os direitos das mulheres
presas, das meninas cumprindo medidas sócio-educativas e de suas familiares -
que sabemos a cor, o gênero, a classe - sejam respeitados. Caso isso não aconteça estaremos para
sempre fadadas a reproduzir os feminismos no que eles possuem de mais
conservador: o viés liberal e individualista.
Preta, insubmissa, do lá: é coisa fina
sinhá?
P.S. Uma campanha pode significar muitas
coisas a depender das sujeitas que dela participam e de suas experiências.
Nesse sentido, #belarecatadadolar também faz circular imagens potentes e
transgressoras como a de companheiras ativistas em protestos políticos. Cito o caso das companheiras do Movimento Mães e Crias na luta em prol da legalização do aborto. O de
famílias de mulheres lésbicas e mães solos com seus filhos. Os de meninas
estudantes protagonistas dos movimentos de ocupação das escolas estaduais do
Rio de Janeiro assim como o das universitárias feministas que têm denunciado os
estupros e demais violências machistas na Universidade Federal do Rio de
Janeiro através do potente movimento #meavisaquandochegar. No dia 06/05,
estaremos lá em Seropédica, a partir das 10h, para conversar em roda sobre "feminismos e a cultura do estupro na UFRRJ", apoiando
esta luta que, de formas distintas, pertence a todas e todos nós.
Fonte: Facebook
Fonte: Coletivo de Mulheres de História (UFRRJ)
Bravo Gi!!!
ResponderExcluirVoce está sempre vendo os outros lados da luta. E são tantas as lutas...Obrigadão.