quinta-feira, 31 de março de 2016

"Lamentamos o inconveniente"


Hoje fui convidada para uma conversa no Em família sobre “Mulheres negras e ativismo”. O programa do Canal da Saúde da FioCruz destaca-se pelo alto nível das pautas e pelo respeito às pessoas convidadas por parte da equipe, em especial de Yasmine Saboia, a apresentadora que, ao contrário da maioria das que promovem encontros, mais escuta do que fala. O momento foi compartilhado com muita emoção ao lado de Ana Paula Lisboa, da Agência de Redes para a Juventude, e Dulce Vasconcellos, representante do Conselho Municipal dos Direitos do Negro do Rio de Janeiro. Emocionei-me em vários momentos. Quando Dulce, expressiva ativista dos movimentos negros e professora aposentada da rede pública, foi apresentada ao público como uma “das primeiras graduandas negras no curso de Letras da UFF há cinquenta anos”. Balançou ainda mais no momento em que Ana Paula rememorou ter sido criada por duas gerações de mulheres negras. Falava ela de pessoas que dedicaram suas vidas ao trabalho doméstico: a avó, desde os 7. A mãe a partir dos 12. Ouvi-la dizer, aos seus 28 anos inaparentáveis, que sua geração assim como a de Marjorie Chaves “pulou” a etapa violenta da naturalização do trabalho doméstico como destino irrefutável das nossas dá sentido às  lutas de hoje, articulando-as àquelas do passado. Dá sentido a quem somos hoje. E isso tudo me fez lembrar de uma menina que  ficou órfã de pai e mãe, tornando-se "filha de criação", com todas as relações com a escravidão que esta categoria pressupõe, aos 11 anos. O nome dela era Leonor. Uma mulher preta, autodidata, que "aprendeu a ver as horas sozinhas" e que, como minha avó, ensinou-me a ler e escrever na companhia do caderno de caligrafia. Tudo isso enquanto minha mãe dedicava-se ao cuidado de outras crianças nos arredores da Vila Vintém, uma favela na zona oeste do Rio de Janeiro na qual ela trabalhou por toda a vida como professora da Educação Infantil. Embora a grande mídia, alicerçada pelo discurso racista e machista, reforce a ideia de que as populações negras e pobres são incapazes de formar e manter famílias, a história da professora Sonia representa a da maioria das trabalhadoras "de cor" do Brasil. Mulheres que não são lembradas como as "mães gentis", apesar de chefiarem suas famílias, garantindo sustento e formando filhos e [filhas] "deste solo". Ser recepcionada pela jornalista Ellen Paes, feminista negra materna, ao fim do programa, coroou os entrelaces de história, memória e identidade, tornando a manhã inesquecível. Impactada, no caminho de volta, escrevivi sobre a experiência em meu facibuqui.

Da esq.p/dir. Ana Paula Lisboa, eu, Dulce Vasconcellos, Yasmine Saboia, Ellen Paes

Foto: Telêmaco Camargo


Dados os processos históricos de subalternização aos quais nossos corpos, comportamentos e representações ficam sujeitos no sistema patriarcal, racista e machista, lembrei-me de uma situação vivida esta semana, quando "em família" tentávamos tirar férias na badalada Praia da Ferradurinha, em Búzios. Enquanto da areia acompanhava meu filho brincando na água, escutei o diálogo de duas crianças brancas. A mais velha, aparentemente com 10 anos, dizia à outra, em torno dos 8: “Não fale assim comigo. Não sou sua empregada”. Fiquei a me perguntar: qual referencial de “empregada” tais meninas têm em casa a ponto de considerar esta profissional como um cala a boca forte o suficiente para pôr fim a um conflito? Na verdade, dada a realidade do país e a maneira como as mulheres negras somos tratadas não é difícil imaginar o porquê da enunciação da empregada doméstica como o ícone da subserviência. Expressão mor daquilo" que não se quer ser. Ainda que sejamos donas de nossas próprias histórias, a ideia de que nascemos para servir aos outros é permanentemente ressignificada nos espaços em que estamos. Servir aos outros, brancos como alguém ou melhor, um bem "praticamente da família", conforme frisa Letícia Faria. Um dia, aliás, pretendo escrever sobre as especificidades de ser uma patroa negra uma vez que, nos últimos anos, meu processo de ascensão social trouxe junto a necessidade de terceirizar o trabalho doméstico, ou, em outras palavras de explorar a mão-de-obra de trabalhadoras, em sua maioria negras. Este dilema que acompanha minha vida é matéria não apenas para textão, mas para livros, seriados, filmes e o que mais for possível em termos de registros problematizadores. Em acordo com bell hooks, creio no poder da escrita para curar, refletir, repensar e assumir nossas contradições.
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Encucada com o diálogo entre duas meninas criadas para serem servidas, lembrei de um fato que vivi no dia 05 de março de 2016 na filial de uma famosa rede de livrarias na rua Voluntários da Pátria, em Botafogo, zona cool, ops, sul carioca. Na busca de um livro para presentear a amiga que se tornara mestra naquela semana, entrei no estabelecimento. Alimentava na mente e no coração a ideia de comprar Olhos d’água, da extraordinária Conceição Evaristo. Entendo que o conceito de escrevivência, com o qual tanto me identifico, poderia contribuir para a inovadora pesquisa de Maria Luiza Rovaris. Um trabalho necessário no momento político que vivemos de combate às "ideologias de gênero" nas escolas e que versa sobre as políticas públicas para reconhecimento das identidades de gênero de pessoas transexuais. Intelectualmente distante de minha pretensão, a vendedora que me atendeu constatou que o referido livro estava na loja, no entanto, não conseguia localiza-lo. Lá pelas tantas, lembrou-se que a obra estava “na mesinha que organizamos de África”. Impactada pelo fato de ouvir tudo aquilo que me dedico a combater, respondi-lhe que esta era uma forma muito equivocada de organizar as publicações de autoras e autores negros. Como sempre esperam de nós mulheres negras, trabalhei de graça, ensinando gentilmente à livreira, ruiva de olhos azuis, que “Conceição Evaristo não é africana. Seu livro não versa (ao menos diretamente) sobre História da África e que logo, ele não deveria estar na mesinha”.

Fui retrucada com o muxoxo do desdém, típico das pessoas brancas que, embora em postos de trabalho subalternizados, aprendem desde cedo que são naturalmente superiores a nós, particularmente nós, mulheres negras. Levada à “mesinha” mais pela raiva do que pelo desejo em si, qual não foi minha surpresa ao ficar cara a cara com Mulheres negras na escravidão e no pós-emancipação. Um livro que eu própria organizara ao lado da amiga-irmã Juliana Barreto Farias e de Flavio dos Santos Gomes. A despeito de ter olhado no fundo dos seus olhos azuis, afirmando que objetivamente nosso livro não deveria estar ali, senti-me extremamente mal e violentada ao ver-me e aos meus colegas de profissão “organizados” daquela forma.
O fato de nós e nossos saberes estarem (dis) postos na “mesinha” sintetiza boa parte da história do negro como objeto de estudo, criticada por cientistas sociais pretos como Guerreiro Ramos, há gerações preterido nos cursos de Pensamento Social Brasileiro devido ao racismo e à marginalização de suas perspectivas analíticas do personalismo negro.

Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982)


O lugar de objeto me fez lembrar dos anos de doutorado na Unicamp, quando, inicialmente, sem bolsa embarcava, semanalmente no "Cometão", o ônibus que saía de Campinas às 23h e me fazia desembarcar às 6h no Rio de Janeiro para trabalhar como professora da educação básica. Recordei-me de histórias como a de meu marido Álvaro Nascimento, que após trabalhar desde a adolescência como técnico em eletrônica, decidiu voltar a estudar, doutorando-se na mesma instituição. Um dos únicos historiadores negros do Brasil, bolsistas de Produtividade do CNPq, seu trabalho A ressaca da marujada conquistou o Prêmio Arquivo Nacional em 2001. Trata-se de uma brilhante pesquisa dedicada à reconstituição de histórias como as de Francisco Dias Martins, João Cândido, Juvino de Sá Barreto e centenas de marinheiros negros que protagonizaram revoltas contra os castigos corporais na Marinha na virada do século XIX para o XX. Pensando nisso tudo, perguntei à vendedora sobre outros escritos de autoras negras. E não é que havia? "Existia um". Segundo ela, “eu não poderia pagar”.

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Cliente Negra: “Por que você acha que eu não posso pagar por um livro? Por que sou preta?"
Vendedora Branca: “De maneira nenhuma, é porque ele é muito caro mesmo”.

Da série curiosidades que tomam conta do nosso ser: afinal que livro "proibidão" é este? Quando soube que se tratava de Um defeito de cor fiquei impactada com o desconhecimento e a falta de respeito que as pessoas brancas têm com as histórias e referências que à base de muita luta construímos. A referida obra, tecida por Ana Maria Gonçalves, constitui-se em preciosidade que tem contribuído para milhares de mulheres negras recompactuarem-se com existências atravessadas pelo racismo e pelo machismo desde sempre. Ainda que como historiadora o ato de ler seja parte da minha rotina, este foi o primeiro livro na vida que me fez virar a noite, tal a minha identificação com a protagonista. Inspirada na história de Luiza Mahin, a menina Kehinde tornada mulher pela violência senhorial, ensinou a mim e a muitas amigas sobre orikis e amuletos, mas especialmente sobre sermos o que quisermos ser como mulheres negras. Talvez resida aí a explicação de ter sido acometida por um sentimento de orfandade quando, após duas semanas de relação intrínseca com a biografia, cheguei a derradeira página 952. Autoras negras como Ana Flavia Pinto Magalhães, Djamila Ribeiro, Luciana Bento e eu própria, temos ressaltado o papel transgressor que a escrita desempenha nas nossas vidas. Os pontos de conexão que estabelecemos com personagens como Kehinde e Esméria de Um defeito de cor, Natalina de Olhos d´água e Ponciá Vicêncio, fortalecem nossas identidades e lutas por respeito e reconhecimento.

Como escreviventes precisamos seguir desestabilizando a certeza da vendedora branca de olhos azuis que eu, preta - ainda que ornamentada com as insígnias da classe alta: jóias, roupas de marca, bolsa de couro, sandália bacana – não posso pagar um livro de R$86,00. Uma certeza tão inabalável quanto a das meninas da Praia da Ferradurinha. Socializadas desde cedo na Orla Bridget Bardot com suas babás, elas comungam da convicção da supremacia branca de que não são, não merecem e não querem ser empregadas domésticas. Trata-se da mesma certeza alimentada pelo gerente da livraria. Um homem branco que, mesmo diante da denúncia em voz alta de uma cliente, acolhida por outros que testemunharam chocados o fato, escolhe deliberadamente silenciar a consumidora pela chave do “não é possível. Isso nunca aconteceu na minha livraria”[que diga-se de passagem não é dele]. Mas de um conhecido clã senhorial de jornalistas que canoniza a opressão e o despreparo típico das elites privilegiadas deste país, como se lê na resposta perante à reclamação feita no site:

Prezada Giovana, boa tarde!
Lamento que tenha passado por essa situação em Botafogo. A atitude relatada foge dos nossos padrões de atendimento. Conversaremos com os funcionários para que tal não se repita.
Abs,

Ao mesmo tempo que “lamentadas”, essas verdades desqualificadoras e silenciadoras – travestidas de eufemismos como "essa situação", “inconvenientes”, "transtorno" - são as mesmas que as mães brancas da escola diferentona de meu filho lançam mão nas reuniões pedagógicas. Mulheres que felizes pela educação “alternativa” que suas crianças recebem, enchem a boca para afirmar que “na idade deles ainda não há percepção racial”. Olham para nós e "lamentam" que tenhamos de viver “essas coisas” que não são “problemas delas”. Profissionais como a professora da turminha, que acha legítimo verbalizar que o critério “do que eu mais gosto” deve prevalecer sobre os de raça, classe, gênero e diversidade na escolha de livros que serão consumidos pelas crianças. A onda branca de que nascemos para servir não é um “lamentável inconveniente”. Ela é fruto do racismo e do machismo estruturais, afrontado com maestria por mulheres negras como as que celebramos esta manhã na Fiocruz. Em respeito à memória de todas elas, na rua Voluntários da Pátria, eu não atravesso mais.
 ***
P.S. Minha escrevivência

À Administração da Livraria ...;

Na sexta-feira, 11/03, por volta das 21h, dirigi-me à unidade de Botafogo (Vol. da Pátria) em busca de um livro para presentear uma amiga. Chegando lá, fui direcionada a uma funcionária que desde o início demonstrou enorme má vontade em me atender. Pedi que checasse se haviam livros de Conceição Evaristo. Ao que ela identificou um deles no sistema. No entanto não o achava na estante. Quando mencionei que Conceição é uma autora negra, a vendedora respondeu-me da seguinte forma: "já sei onde está. Temos uma MESINHA com essas coisas sobre África". Respondi-lhe que Conceição não era "africana", mas brasileira. E tão pouco a obra em questão - "Olhos d´água", versava sobre histórias da África e que era muito equivocado organizar livros em mesas a partir desses critérios. Ela olhou-me com semblante de desdém. Ao chegar a tal "mesinha", o primeiro livro com o qual me deparei foi o meu próprio - "Mulheres Negras no Brasil Escravista e Pós-Emancipação", coletânea organizada em conjunto com dois colegas historiadores: Juliana Barreto Farias e Flavio Gomes. Expliquei que nossa obra não deveria estar ali. De novo, o desdém de retorno. Como ela não encontrava o livro de Conceição, perguntei sobre escritos de outras autoras negras. Ela disse que havia mais um livro escrito por uma mulher negra, mas ele "era muito cara e não sabia se eu poderia pagar". Surpreendida, perguntei-lhe porque achava que eu não poderia pagar. O fato de eu ser uma cliente negra justificaria a "preocupação" dela? Justificaria também o fato dela me olhar de cima a baixo e repetir que eu "não poderia pagar"? Absolutamente chocada com a resposta, procurei o gerente da casa. Relatei o ocorrido. O mesmo, em atitude de absoluto despreparo, disse-me apenas que "isso nunca aconteceu lá" e pediu que mostrasse quem era a vendedora. Informei-lhe que ainda que fosse "inédito", estava "acontecendo naquele momento" e ele "precisava se posicionar". Fomos até a livreira, que insistiu em repetir que "achava que eu não poderia pagar" porque afinal por se tratar de "presente" eu não ia "querer algo muito caro". Perguntei-lhe, na presença do gerente, o que a fazia pensar desta forma se em nenhum momento vinculei meu pedido à faixa de preço. Embora cobrado por mim, o gerente não tomou nenhuma atitude, a não ser legitimar o discurso do "deixa disso". O constrangimento a esta altura era tão grande. Zona sul carioca. Sexta-feira à noite. Loja lotada. Pessoas olhando. Aproximando-se. Decidi explicar por minha conta o que estava acontecendo. Comuniquei às e aos presentes que estava lá como qualquer outro cliente em busca de um livro. Entretanto, a vendedora respondeu-me que tinha o que eu queria, mas que "não sabia se eu poderia pagar". Um grupo aproximou-se do gerente e chamou sua atenção, dizendo-lhe o quão lamentável era este tipo de tratamento e que ele precisaria formar melhor seus e suas funcionárias. O que seria um momento de prazer e ludicidade, a compra de um presente para uma pessoa querida, tornou-se um episódio de violências e constrangimentos indescritíveis, tanto da parte da vendedora quanto do gerente que não acolheu minha reclamação. Termino perguntando: o que faz uma vendedora pensar e sentir-se à vontade de afirmar que eu não poderia pagar pela obra Um defeito de cor, um clássico de Ana Maria Gonçalves, ofertado no catálogo de promoções da loja por $86,00? Assim sendo, como cliente aguardo um posicionamento da livraria em relação ao ocorrido. P.S. Infelizmente, não registrei os nomes do gerente e da livreira, mas eu assim como algumas testemunhas presentes no local, podemos identificá-los.
Att, Giovana Xavier - Profa. de Ensino de História na Faculdade de Educação da UFRJ.










3 comentários:

  1. Assisti hoje o debate! Amei <3
    Já sinta-se convidada para participar da inauguração do Coletivo Negro Politécnico na Fiocruz! Entrarei em contato para lhe avisar sobre a data. Beijos!

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  2. Preciso te conhecer! Mais uma musa inspiradora pra minha lista! Estou com um projeto de empoderamento pra crianças com a finalidade de ensinar a cultura afro brasileira para as crianças, tenho muita dificuldade de encontrar literatura para crianças, inclusive pra eu ler, todos esses livros sitados nunca foram encontrados aqui, já questionei a gerência no qual pediu que fosse feito muitas reclamações para que esse pedido seja efetivo. Já pedi para meus amigos que então reclamem que para que possamos ter esses livros conosco. Até agora meu pedido não foi atendido mas lutarei para que isso saia do lamento de apenas falar que não possui e pronto. Lamentável!

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