Em meio a confetes e serpentinas (Salve Oyá!), os
últimos tempos têm sido de permanentes repensares sobre as subjetividades
políticas que envolvem ser uma mulher negra, mãe de uma criança negra
escolarizada e, portanto, socializada, em grande parte, no mundo dos brancos.
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Este questionamento vem de longe, de minha
própria história uma vez que, dado o esforço coletivo das mulheres de minha
família, estudei em uma escola branca de classe alta no subúrbio do Méier, onde
fui criada. No caso do nosso filho, a história, embora convergente, é distinta. Ele
não estuda numa escola privada da zona sul graças ao “esforço coletivo” de
pessoas pobres, que apostam suas fichas na educação de “qualidade”. Ele estuda
lá porque sua mãe e seu pai ascenderam socialmente e hoje, como
professores de universidades federais, concentram uma renda que nos coloca
entre os 2% da sociedade brasileira. É isso mesmo bebê, somos negros Classe A! Pergunta que não quer calar: quais as especificidades do processo de afirmação
racial de sujeitos e famílias negras inseridos como “economicamente iguais” no
mundo e na cultura da branquidade? Em termos de escolarização, esta é uma questão absolutamente complexa,
apesar de minimizada por frases pedagógicas que seduzem famílias brancas e que colocam
mães e pais pretos ativistas em permanente angústia. “O Brasil é o país da
mistura racial”. “Aqui na escola trabalhamos pelo viés da diversidade”. “Seu
filho é tratado como todos os outros” (parênteses da mãe preta chata: embora o cabelo dele não seja penteado)... Enquanto para muitas famílias brancas dizeres como estes são considerados motivos para confiar na escola, para nós
isto representa um fator preocupante. Uma preocupação alimentada por experiências de
diálogo com a instituição absolutamente tensas, silenciadoras e
desqualificadoras do nosso capital cultural de historiadores, professores e pais. Recentemente, fui à escola a fim de conhecer a biblioteca.
Gostaria de entender qual o papel da mesma no desenvolvimento de projetos
pedagógicos que ocorrem na sala de aula. A primeira surpresa foi a dificuldade
posta pela coordenação para a visita. A profissional responsável, em fase de desenvolvimento de sua tese de doutorado,“não teria tempo” para realizar o
atendimento solicitado. Dada a inconveniência da insistente mãe preta, a
visita tornou-se realidade. Fui muito bem recebida. Saudada sendo apresentada ao “baú da África”. Deixe-me explicar melhor. Trata-se de caixa de madeira
customizada com tecidos de onças e cobras e repleta de livros adultos e
infantis de história da África e cultura afro-brasileira. De forma subliminar,
o baú da África representa o que Lélia Gonzalez, nos anos 1980, denunciava como o
“lugar do negro” na sociedade brasileira. O baú está à margem das estantes da
biblioteca. A história dos negros à margem da história do país... A política
pró-diversidade reverberava nos livros que meu filho trazia para casa.
Impressos que reproduziam estereótipos e lançavam mão de linguagem
absolutamente inadequada para sua faixa etária. Como explicar a uma criança de
três anos que “enquanto contavam o dinheiro roubado os malfeitores comiam
queijo e bebiam vinho”? Não há com o que se preocupar, essa não é a “parte mais
importante da história”. O que importa mesmo é que Os músicos de Bremen é um clássico da "literatura universal”. E isso justifica sua permanência na biblioteca da escola assim como a manutenção de
seu uso nas turmas da educação infantil. Sobre bandidos, as crianças “precisam
saber que existe este tipo de pessoa”. Por sorte do destino, os personagens da
referida história eram brancos e europeus... Ufa! Em conversa informal, dadas
as dificuldades de marcar uma simples reunião, que só pode ser realizada na parte da tarde, entre 13 e 17h, também fomos
informados que mães de outra turma estavam empreendendo uma campanha contra o
personagem Saci Pererê. O cachimbo do moleque vai de encontro ao empenho das
famílias no combate ao cigarro. É preciso combatê-lo. É isso aí... Na prática de uma chamada
“parceria”, participamos (nós e as famílias das outras crianças) de uma oficina
de confecção de bonecas Abayomi, ministrada por uma professora branca, com sua
“auxiliar”, negra. Lá, meu filho e seus colegas aprenderam que tais bonecas
eram feitas por crianças de um povo “muito diferente”, de “pele preta” e
“cabelo crespo”. Ficamos sabendo que o povo homenageado vem de um lugar muito distante. Um lugar chamado África. Que
maravilha participar do cumprimento de uma política pública educacional, a lei
10.639/03... Talvez devido a todo este empenho seja esperado que no
grupo de famílias no zapzap, mães façam
piadas com a sujeira deixada pelas crianças após uma festa de aniversário na
escola. “Coitada de quem vai limpar esta bagunça”. É muito engraçado mesmo... Hahaha! Talvez isso também explique porque, a despeito de nossa afro paciência
e generosidade nas fartas explicações (wikipretos), boa parte do grupo, tenha definido
em seus próprios termos o que era racismo. Definição feita, escolheram como
capa do álbum das crianças da turma, uma imagem preconceituosa, baseada na
homogeneização dos negros e na representação grotesca de seus/nossos traços físicos. Tudo bem, como aprendi com uma materna consciente, "o negro é parte do folclore brasileiro". Perguntas que sempre nos acompanham: como
reeducar para as relações raciais em espaços hegemonizados pela supremacia
branca? De que formas combater o racismo sem expor ou gerar traumas em crianças
negras e brancas? De que modo sensibilizar equipes pedagógicas para assumirem o
compromisso de trabalhar a diversidade de um ponto de vista histórico,
reconhecendo que as identidades são produzidas através dos conflitos? Como
lidar com pareceres de professoras sobre “descuido com o corpo” ao descrever o
comportamento de uma criança negra? As opiniões entre famílias negras são
distintas (achado do Carnaval: sim, somos e pensamos diferente!). Há quem ache
que a solução está em colocar as crianças em escolas públicas, com público mais
diverso em termos de raça e classe. Quem defenda que devemos estar em espaços das classes altas,
ocupando-os e disputando-os. E há também quem professe que, na verdade, o racismo que
vivenciamos foi transposto uma vez que conseguimos chegar a espaços como este.
O que aprendemos até aqui?
1. O não reconhecimento do racismo como estruturante das relações sociais no Brasil.
2. O
despreparo das mais prestigiosas escolas particulares da zona sul carioca,
especialmente das coordenações pedagógicas, para lidar com subjetividades
políticas que emanam de desigualdades de raça experimentadas cotidianamente. Tais
instituições alimentam um grande abismo entre teoria e prática ao reivindicarem
parceria, ao mesmo tempo em que se recusam a dialogar com famílias negras
questionadoras dos lugares estereotipados que corriqueiramente nos são
reservados em livros, filmes e programas televisivos.
3. Essas
escolas, de olhos fechados e ouvidos tampados para nossos saberes científicos e
existenciais, recusam ofertas de oficinas e demais iniciativas, naturalizando o
racismo como um “problema do negro”.
4. A resistência ao diálogo e à promoção de
uma formação continuada que reconheça o problema racial compromete diretamente o processo
educativo também das crianças brancas, formadas numa cultura reprodutora de desigualdades
raciais assim como de classe, gênero e sexualidade.
5. Treinados
para serem a elite brasileira do amanhã, os pequenos aprendem, desde a mais tenra
idade, a confinar pessoas negras aos espaços de subalternidade da faxina. Da
segurança. Da cozinha. Da portaria.
Em que acreditamos?
Se o currículo é um “documento de identidade”, romper
com as representações estereotipadas da população afrodescendente deveria ser compromisso
de todas as famílias e da comunidade escolar em vez de “missão”, dever
exclusivo de pessoas negras.
Afinal de contas meu bem, o que não queremos?
Um mundo sem racismo em que minha criança nem a sua sejam representadas
como o black poor boy da feira
literária super bacana...
Campanha "Racismo na infância: uma forma de maus tratos", promovida pelo Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT).
Disponível em: http://www.ceert.org.br Acesso: 11/02/2016.
Excelente!
ResponderExcluirTexto perfeito... Parabéns ...
ResponderExcluirPerfect!!!
ResponderExcluirVc continua MARAVILHOSA! Parabéns! NOzi
ResponderExcluirImportante chegar esta mensagem de reflexão até que já proferida mas não efetivamente entendida)aos espaços públicos e privados de ensino. Parabéns!
ResponderExcluirMuito interessante a reflexão. Fico aqui a pensarr: Nas escolas públicas periféricas, as crianças negras mesmo sendo a maioria são estigmatizadas. Nas públicas de elite [como os Caps, federais...] são "quase" exceções e os poucos que tem vivem num universo de embranquecimento. Nas privadas de elite, também nossos meninos e meninas pretas [os que conseguem lá estar] são educados através do mito da democracia racial... Enfim, educação/escola ainda é um "problema" para nossas crianças.
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