Hoje fui convidada para uma conversa no Em família sobre “Mulheres negras e ativismo”. O programa
do Canal da Saúde da FioCruz destaca-se pelo alto nível das pautas e pelo respeito às pessoas convidadas por parte da equipe, em especial de Yasmine Saboia, a apresentadora que, ao contrário da maioria das que promovem encontros, mais escuta do que fala. O momento foi compartilhado com muita emoção ao lado de Ana Paula Lisboa, da Agência de Redes para a Juventude, e Dulce Vasconcellos, representante do Conselho Municipal dos Direitos do
Negro do Rio de Janeiro. Emocionei-me em vários momentos. Quando Dulce, expressiva ativista dos movimentos negros e professora aposentada da
rede pública, foi apresentada ao público como uma “das primeiras
graduandas negras no curso de Letras da UFF há cinquenta anos”. Balançou ainda
mais no momento em que Ana Paula rememorou ter sido criada por duas gerações de mulheres
negras. Falava ela de pessoas que dedicaram suas vidas ao trabalho doméstico: a avó, desde os 7. A mãe a partir dos 12. Ouvi-la dizer, aos seus 28 anos inaparentáveis,
que sua geração assim como a de Marjorie Chaves “pulou” a etapa violenta da naturalização do trabalho doméstico como destino irrefutável das nossas dá sentido às lutas de hoje, articulando-as àquelas do passado. Dá sentido a quem somos hoje. E isso tudo me fez lembrar de uma menina que ficou órfã de pai e mãe, tornando-se "filha de criação", com todas as relações com a escravidão que esta categoria pressupõe, aos 11 anos. O nome dela era Leonor. Uma mulher preta, autodidata, que "aprendeu a ver as horas sozinhas" e que, como minha avó, ensinou-me a ler e escrever na companhia do caderno de caligrafia. Tudo isso
enquanto minha mãe dedicava-se ao cuidado de outras crianças nos arredores da Vila Vintém, uma favela na zona oeste do Rio de Janeiro na qual ela trabalhou por toda a vida como professora da
Educação Infantil. Embora a grande mídia, alicerçada pelo discurso racista e machista, reforce a ideia de que as populações negras e pobres são incapazes de formar e manter famílias, a história da professora Sonia representa a da maioria das trabalhadoras "de cor" do Brasil. Mulheres que não são lembradas como as "mães gentis", apesar de chefiarem suas famílias, garantindo sustento e formando filhos e [filhas] "deste solo". Ser
recepcionada pela jornalista Ellen Paes, feminista negra materna, ao fim do
programa, coroou os entrelaces de história, memória e identidade, tornando a manhã inesquecível. Impactada, no caminho de
volta, escrevivi sobre a experiência em
meu facibuqui.
Da esq.p/dir. Ana Paula Lisboa, eu, Dulce Vasconcellos, Yasmine Saboia, Ellen Paes
Foto: Telêmaco Camargo
Dados os processos históricos de
subalternização aos quais nossos corpos, comportamentos e representações ficam
sujeitos no sistema patriarcal, racista e machista, lembrei-me de uma situação
vivida esta semana, quando "em família" tentávamos tirar férias na badalada Praia da
Ferradurinha, em Búzios. Enquanto da areia acompanhava meu filho brincando na
água, escutei o diálogo de duas crianças brancas. A mais velha, aparentemente
com 10 anos, dizia à outra, em torno dos 8: “Não fale assim comigo. Não sou sua
empregada”. Fiquei a me perguntar: qual referencial de “empregada” tais meninas têm
em casa a ponto de considerar esta profissional como um cala a boca forte o suficiente para pôr fim a um conflito? Na verdade,
dada a realidade do país e a maneira como as mulheres negras somos tratadas não
é difícil imaginar o porquê da enunciação da empregada doméstica como o ícone
da subserviência. Expressão mor daquilo" que não se quer ser. Ainda que sejamos donas de nossas próprias histórias, a ideia
de que nascemos para servir aos outros é permanentemente ressignificada nos
espaços em que estamos. Servir aos outros, brancos como alguém ou melhor, um bem "praticamente da família", conforme frisa Letícia Faria. Um dia, aliás,
pretendo escrever sobre as especificidades de ser uma patroa negra uma vez que,
nos últimos anos, meu processo de ascensão social trouxe junto a necessidade de
terceirizar o trabalho doméstico, ou, em outras palavras de explorar a
mão-de-obra de trabalhadoras, em sua maioria negras. Este dilema que acompanha
minha vida é matéria não apenas para textão, mas para livros, seriados, filmes
e o que mais for possível em termos de registros problematizadores. Em acordo com bell hooks, creio
no poder da escrita para curar, refletir, repensar e assumir nossas
contradições.
***
Encucada com o diálogo
entre duas meninas criadas para serem servidas, lembrei de um fato que vivi no dia 05 de março de 2016 na filial de uma famosa rede de livrarias na rua
Voluntários da Pátria, em Botafogo, zona cool, ops, sul carioca. Na busca de um livro para presentear a
amiga que se tornara mestra naquela semana, entrei no estabelecimento.
Alimentava na mente e no coração a ideia de comprar Olhos d’água, da extraordinária Conceição Evaristo. Entendo que o
conceito de escrevivência, com o qual tanto me identifico, poderia contribuir
para a inovadora pesquisa de Maria Luiza Rovaris. Um trabalho necessário no momento político que vivemos de combate às "ideologias de gênero" nas escolas e que versa sobre as políticas públicas para reconhecimento
das identidades de gênero de pessoas transexuais.
Intelectualmente distante de minha pretensão, a vendedora que me atendeu constatou que o referido livro estava na loja, no entanto, não conseguia
localiza-lo. Lá pelas tantas, lembrou-se que a obra estava “na mesinha que organizamos
de África”. Impactada pelo fato de ouvir tudo aquilo que me dedico a
combater, respondi-lhe que esta era uma forma muito equivocada de organizar as
publicações de autoras e autores negros. Como sempre esperam de nós mulheres negras, trabalhei de graça, ensinando gentilmente à livreira, ruiva de olhos
azuis, que “Conceição Evaristo não é africana. Seu livro não versa (ao menos
diretamente) sobre História da África e que logo, ele não deveria estar na mesinha”.
Fui retrucada com o muxoxo do desdém, típico das pessoas brancas que, embora em
postos de trabalho subalternizados, aprendem desde cedo que são naturalmente superiores
a nós, particularmente nós, mulheres negras. Levada à “mesinha” mais pela raiva
do que pelo desejo em si, qual não foi minha surpresa ao ficar cara a cara com Mulheres negras na escravidão e no pós-emancipação. Um livro que eu própria organizara ao lado da amiga-irmã Juliana
Barreto Farias e de Flavio dos Santos Gomes. A despeito de ter olhado no fundo dos
seus olhos azuis, afirmando que objetivamente nosso livro não deveria estar
ali, senti-me extremamente mal e violentada ao ver-me e aos meus colegas de
profissão “organizados” daquela forma.
O fato de nós e nossos saberes estarem (dis)
postos na “mesinha” sintetiza boa parte da história do negro como objeto de
estudo, criticada por cientistas sociais pretos como Guerreiro Ramos, há gerações
preterido nos cursos de Pensamento Social Brasileiro devido ao racismo e à marginalização de suas perspectivas analíticas do personalismo negro.
Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982)
O lugar de objeto me fez lembrar dos anos de doutorado na Unicamp, quando, inicialmente, sem bolsa embarcava, semanalmente no "Cometão", o ônibus que saía de Campinas às 23h e me fazia desembarcar às 6h no Rio de Janeiro para trabalhar como professora da educação básica. Recordei-me de histórias como a de meu marido Álvaro Nascimento, que após trabalhar desde a adolescência como técnico em eletrônica, decidiu voltar a estudar, doutorando-se na mesma instituição. Um dos únicos historiadores negros do Brasil, bolsistas de Produtividade do CNPq, seu trabalho A ressaca da marujada conquistou o Prêmio Arquivo Nacional em 2001. Trata-se de uma brilhante pesquisa dedicada à reconstituição de histórias como as de Francisco Dias Martins, João Cândido, Juvino de Sá Barreto e centenas de marinheiros negros que protagonizaram revoltas contra os castigos corporais na Marinha na virada do século XIX para o XX. Pensando nisso tudo, perguntei à vendedora sobre outros escritos de autoras negras. E não é que havia? "Existia um". Segundo ela, “eu não poderia pagar”.
***
Cliente Negra: “Por que você acha que eu não
posso pagar por um livro? Por que sou preta?"
Vendedora Branca: “De maneira nenhuma,
é porque ele é muito caro mesmo”.
Da série curiosidades que tomam conta do nosso ser: afinal que
livro "proibidão" é este? Quando soube que se tratava de Um defeito de cor fiquei impactada com o
desconhecimento e a falta de respeito que as pessoas brancas têm com as
histórias e referências que à base de muita luta construímos. A referida
obra, tecida por Ana Maria Gonçalves, constitui-se em preciosidade que tem
contribuído para milhares de mulheres negras recompactuarem-se com existências
atravessadas pelo racismo e pelo machismo desde sempre. Ainda que como historiadora o ato de ler seja parte da minha rotina, este foi o primeiro livro na vida
que me fez virar a noite, tal a minha identificação com a protagonista.
Inspirada na história de Luiza Mahin, a menina Kehinde tornada mulher pela
violência senhorial, ensinou a mim e a muitas amigas sobre orikis e amuletos,
mas especialmente sobre sermos o que quisermos ser como mulheres negras. Talvez resida aí a explicação de ter sido acometida por um sentimento de orfandade quando, após duas semanas de relação intrínseca com a biografia, cheguei a derradeira página 952. Autoras negras como Ana Flavia Pinto Magalhães, Djamila Ribeiro, Luciana Bento e eu própria, temos ressaltado o papel transgressor que a escrita desempenha nas nossas vidas. Os
pontos de conexão que estabelecemos com personagens como Kehinde e Esméria de Um defeito de cor, Natalina de Olhos d´água e Ponciá Vicêncio, fortalecem nossas identidades e lutas por respeito e reconhecimento.
Como escreviventes precisamos seguir desestabilizando
a certeza da vendedora branca de olhos azuis que eu, preta - ainda que
ornamentada com as insígnias da classe alta: jóias, roupas de marca, bolsa de
couro, sandália bacana – não posso pagar um livro de R$86,00. Uma certeza tão
inabalável quanto a das meninas da Praia da Ferradurinha. Socializadas desde cedo na Orla Bridget Bardot com suas babás, elas comungam da convicção da supremacia branca de que não são, não merecem e não querem
ser empregadas domésticas. Trata-se da mesma certeza alimentada pelo gerente da
livraria. Um homem branco que, mesmo diante da denúncia em voz alta de uma cliente, acolhida por outros que testemunharam chocados o fato,
escolhe deliberadamente silenciar a consumidora pela chave do “não é possível. Isso nunca aconteceu na minha
livraria”[que diga-se de passagem não é dele]. Mas de um conhecido clã senhorial de jornalistas que canoniza a opressão e o despreparo típico das elites privilegiadas deste país, como se lê na resposta perante à reclamação feita no site:
Prezada Giovana, boa
tarde!
Lamento que tenha
passado por essa situação em Botafogo. A atitude relatada foge dos nossos
padrões de atendimento. Conversaremos com os funcionários para que tal não se
repita.
Abs,
Ao mesmo tempo que “lamentadas”,
essas verdades desqualificadoras e silenciadoras – travestidas de
eufemismos como "essa situação", “inconvenientes”, "transtorno" - são as mesmas que as mães brancas da escola diferentona de
meu filho lançam mão nas reuniões pedagógicas. Mulheres que felizes pela
educação “alternativa” que suas crianças recebem, enchem a boca para afirmar
que “na idade deles ainda não há percepção racial”. Olham para nós e "lamentam" que tenhamos de
viver “essas coisas” que não são “problemas delas”. Profissionais como a professora
da turminha, que acha legítimo verbalizar que o critério “do que eu mais gosto” deve
prevalecer sobre os de raça, classe, gênero e diversidade na escolha de livros que serão consumidos pelas crianças. A onda branca de que
nascemos para servir não é um “lamentável inconveniente”. Ela é fruto do
racismo e do machismo estruturais, afrontado com maestria por mulheres negras
como as que celebramos esta manhã na Fiocruz. Em respeito à memória de todas
elas, na rua Voluntários da Pátria, eu não atravesso
mais.
***
P.S. Minha escrevivência
À Administração da Livraria ...;
Na sexta-feira, 11/03, por volta das 21h, dirigi-me à unidade de
Botafogo (Vol. da Pátria) em busca de um livro para presentear uma amiga.
Chegando lá, fui direcionada a uma funcionária que desde o início demonstrou
enorme má vontade em me atender. Pedi que checasse se haviam livros de
Conceição Evaristo. Ao que ela identificou um deles no sistema. No entanto não
o achava na estante. Quando mencionei que Conceição é uma autora negra, a
vendedora respondeu-me da seguinte forma: "já sei onde está. Temos uma
MESINHA com essas coisas sobre África". Respondi-lhe que Conceição não era
"africana", mas brasileira. E tão pouco a obra em questão -
"Olhos d´água", versava sobre histórias da África e que era muito equivocado
organizar livros em mesas a partir desses critérios. Ela olhou-me com semblante
de desdém. Ao chegar a tal "mesinha", o primeiro livro com o qual me
deparei foi o meu próprio - "Mulheres Negras no Brasil Escravista e
Pós-Emancipação", coletânea organizada em conjunto com dois colegas
historiadores: Juliana Barreto Farias e Flavio Gomes. Expliquei que nossa obra
não deveria estar ali. De novo, o desdém de retorno. Como ela não encontrava o
livro de Conceição, perguntei sobre escritos de outras autoras negras. Ela
disse que havia mais um livro escrito por uma mulher negra, mas ele "era
muito cara e não sabia se eu poderia pagar". Surpreendida, perguntei-lhe
porque achava que eu não poderia pagar. O fato de eu ser uma cliente negra
justificaria a "preocupação" dela? Justificaria também o fato dela me
olhar de cima a baixo e repetir que eu "não poderia pagar"?
Absolutamente chocada com a resposta, procurei o gerente da casa. Relatei o
ocorrido. O mesmo, em atitude de absoluto despreparo, disse-me apenas que
"isso nunca aconteceu lá" e pediu que mostrasse quem era a vendedora.
Informei-lhe que ainda que fosse "inédito", estava "acontecendo
naquele momento" e ele "precisava se posicionar". Fomos até a
livreira, que insistiu em repetir que "achava que eu não poderia
pagar" porque afinal por se tratar de "presente" eu não ia
"querer algo muito caro". Perguntei-lhe, na presença do gerente, o
que a fazia pensar desta forma se em nenhum momento vinculei meu pedido à faixa
de preço. Embora cobrado por mim, o gerente não tomou nenhuma atitude, a não
ser legitimar o discurso do "deixa disso". O constrangimento a esta
altura era tão grande. Zona sul carioca. Sexta-feira à noite. Loja lotada.
Pessoas olhando. Aproximando-se. Decidi explicar por minha conta o que estava
acontecendo. Comuniquei às e aos presentes que estava lá como qualquer outro
cliente em busca de um livro. Entretanto, a vendedora respondeu-me que tinha o
que eu queria, mas que "não sabia se eu poderia pagar". Um grupo aproximou-se do gerente e chamou sua atenção, dizendo-lhe o quão
lamentável era este tipo de tratamento e que ele precisaria formar melhor seus
e suas funcionárias. O que seria um momento de prazer e ludicidade, a compra de
um presente para uma pessoa querida, tornou-se um episódio de violências e constrangimentos
indescritíveis, tanto da parte da vendedora quanto do gerente que não acolheu
minha reclamação. Termino perguntando: o que faz uma vendedora pensar e
sentir-se à vontade de afirmar que eu não poderia pagar pela obra Um defeito de
cor, um clássico de Ana Maria Gonçalves, ofertado no catálogo de promoções da
loja por $86,00? Assim sendo, como cliente aguardo um posicionamento da
livraria em relação ao ocorrido. P.S. Infelizmente, não registrei os nomes do
gerente e da livreira, mas eu assim como algumas testemunhas presentes no
local, podemos identificá-los.
Att, Giovana Xavier - Profa. de Ensino de História na Faculdade de
Educação da UFRJ.
Assisti hoje o debate! Amei <3
ResponderExcluirJá sinta-se convidada para participar da inauguração do Coletivo Negro Politécnico na Fiocruz! Entrarei em contato para lhe avisar sobre a data. Beijos!
Preciso te conhecer! Mais uma musa inspiradora pra minha lista! Estou com um projeto de empoderamento pra crianças com a finalidade de ensinar a cultura afro brasileira para as crianças, tenho muita dificuldade de encontrar literatura para crianças, inclusive pra eu ler, todos esses livros sitados nunca foram encontrados aqui, já questionei a gerência no qual pediu que fosse feito muitas reclamações para que esse pedido seja efetivo. Já pedi para meus amigos que então reclamem que para que possamos ter esses livros conosco. Até agora meu pedido não foi atendido mas lutarei para que isso saia do lamento de apenas falar que não possui e pronto. Lamentável!
ResponderExcluirParabens pela iniciativa...
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