segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Em fevereiro de 2015, fui convidada pelas queridonas do Coletivo Meninas Black Power para participar do I Seminário Internacional Encrespando 2015 - Refletindo a Década Internacional dos Afro-Descendentes (ONU 2015-2024), que ocorreu na Puc-Rio entre 03 e 05 de novembro de 2015. Assim como eu e Elizabeth Guimarães, Azoilda Loretto da Trindade, recebeu o mesmo convite, ao qual, prontamente aceitou. Entretanto, diante das peripécias da vida, Zo passou a abrilhantar o Orun no dia 13 de setembro de 2015, deixando conosco muita saudade, muitos saberes. Eis aqui a minha escrevivência-homenagem a esta mulher-estrela que tanto me ensinou sobre afetos, transgressões e sementes de amor. Conforme você gostava de cantar: "Eu entrego. Eu confio. Eu aceito. Eu agradeço".


A Azoilda em forma de arte


Via de regra as homenagens para pessoas que se destacaram na cultura escrita são feitas rememorando suas obras, iluminando seus conceitos, transcrevendo citações marcantes. Certamente que Azoilda Loretto da Trindade produziu de sobra para ser lembrada e celebrada por afrografias tão marcantes quanto A formação da mulher negra na mídia, tese de doutorado defendida pela intelectual em 2005 na Escola de Comunicação da UFRJ, no mesmo prédio, onde, anos depois, eu assumiria uma das cadeiras da disciplina Prática de Ensino de História, junto com meu amigo-irmão Amilcar Pereira, que, por seu turno, vem a ser filho de Amauri Pereira, amigo-irmão de Zo. Entretanto, esse texto é uma homenagem por outras trilhas. Ele é fundamentalmente uma escrevivência sobre relações de cuidado entre mulheres negras, mas não somente. Ao reconfigurar a proposta de “transgredir”[1] – uma proposta devo dizer, muito influenciada por meu filho Peri, que na sua sabedoria mirim me ensina que podemos brincar no escorrega tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima, é que escolho celebrar Azoilda. Um brinde a partir daquele que foi seu grande diferencial: o reconhecimento do lugar dos afetos na produção do conhecimento. Trata-se então de uma escrevivência[2] de uma mulher negra para uma segunda, que marcou sua vida como tatuagem. Mas trata-se também de um ato de escreviver mais amplo, que transcende a mim e a Azoilda, espalhando-se entre muitas mulheres negras, mas não somente. Por fim, trata-se de uma possibilidade de escreviver como podemos e devemos em vida cuidar umas das outras, dando ouvidos às nossas múltiplas diferenças. Abrir-nos para o cuidado implica criar possibilidades para nos repensarmos em nossos erros, acertos. Em nossos privilégios. Sejam eles de raça, gêneros, sexualidades, classes, gerações, cada uma de nós, em graus e sentidos distintos possui ou possuiu algum privilégio, ao menos uma vez na vida. Obviamente que a mutável condição de “privilegiada” é atravessada por inúmeras opressões das quais sabemos bem que somos sujeitas. Reconhecer é a palavra. Então coloco-me na roda, localizando meu saber como o de uma acadêmica negra. Uma “preta dotora” classe alta. Uma mulher negra, feminista, esposa, mãe, não heteronormativa, Reconhecer essas tantas identidades, permeadas por conflitos, é manter-me coerente comigo mesma, assumindo, na primeira pessoa, o impacto de minhas subjetividades na construção dos conceitos, interpretações e intervenções que realizo. Das relações humanas que estabeleço, dos amores e raivas que nutro internamente. E assumir isso faz parte do que reservei para celebrar a vida de Azoilda Loretto da Trindade.


***

Conheci a Azoilda Loretto da Trindade em 2006. Eu era uma doutoranda em História. Tinha 25 anos. Estava cheia de sonhos e expectativas em relação ao papel da academia nas transformações sociais, nas lutas antirracistas, antimachistas. Conhecê-la foi realmente impactante, não apenas porque foi Azoilda, certamente, a pessoa que em todos esses anos mais desestabilizou, alfinetou e, ao fim, inviabilizou minha aposta numa leitura de mundo academicocentrica. Oxalá eu tive tempo para te dizer em vida: obrigada por me oferecer sua mão e seu amor para que eu lesse outros mundos. Eles gritam para além das teses, dissertações, monografias e títulos. Obrigada amiga! Azoilda é dessas. Dessas que souberam fazer um uso seletivo da vida acadêmica, construindo projetos educativos calcados na circularidade e no cooperativismo, dois dos doze valores civilizatórios afro-brasileiros, conceitualmente tecidos e calorosamente praticados e compartilhados por ela. Diante de figura tão marcante, foi uma sensação muito forte me dar conta que em curto espaço de tempo estava realmente me tornando amiga desta mulher que homenageamos aqui. À época, achava estranho conjugar amizade, intimidade e reverência. Mas acho que foi assim que construímos nossa história. Uma história cheia de amor. Um amor vivo, de carne e osso, onde não faltaram alfinetadas e farpas. “Somos vaidosas”, “não quero te perder”, dizíamos uma à outra das muitas vezes em que brigávamos. Quando nos encontramos Zo era coordenadora pedagógica do Projeto A Cor da Cultura. Eu, enfeitiçada pela “pretagogia”[3] dos seus valores civilizatórios afro-brasileiros embarquei “facinha” com ela e outras malungas como Célia Cristo, Janete Ribeiro, Mônica Iaromilá e Rosenilda Santana. Dada a força individual de cada uma, eu, àquela altura, já sabia se tratar de travessia sem volta. E é da perspectiva de travessias atravessadas que escrevivo nossa história.



Mandala dos Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros
Autora: Azoilda Loretto da Trindade

Na última semana de vida da Zo, em setembro de 2015, viajei para Salvador. Assim como Célia Cristo, Janete Ribeiro e Fabiana Lima, fui participar do Simpósio Desfazendo Gênero, representando o Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras assim como o Núcleo de Desconstrução de Gêneros. Enquanto o Degenera é um grupo coordenado por minha grande amiga Amana Mattos, o Intelectuais Negras refere-se a uma proposta idealizada por mim. E abraçada por algumas muitas mulheres negras, em especial Zo, que com toda sua expertise sempre apostou no sucesso do grupo. Apostou, creio, até mais do que eu mesma. Àquela altura, tinha clareza que o estado de saúde de Azoilda já estava muito complicado. Mas, de todo modo achei incrivelmente surreal que mulheres significativas na vida dela, tais quais a irmã escolhida Janete, estavam em Salvador, a cidade em que ela nascera, justo na sua última semana de vida. Mais surreal ainda, foi descobrir, já no aeroporto de Salvador, voltando para o Rio, que eu precisava ir direto para o hospital. Essas travessias atravessadas entre soteropolitanas e cariocas têm tudo a ver com Azoilda. A rainha maga das artimanhas circulares. Como professora, aprendi com ela sobre a importância de sentarmos em círculo nos espaços educativos. A cada aula em que arrumo as cadeiras nessa disposição é de você quem me lembro Zo. E como o tema é artimanha, você aprontou mais uma das suas conosco. Era um domingo chuvoso, quando nós, mulheres negras e brancas a quem ela, de diferentes formas, escolheu como integrantes de sua família, cantamos ao seu redor:

O sobrado de mamãe é debaixo d'água.

O sobrado de mamãe é debaixo d'água.

Debaixo d'água, por cima da areia.

Tem ouro, tem prata.

Tem diamante que nos "alumeia".

Tem ouro, tem prata.

Tem diamante que nos "alumeia". [4]


Esse foi um daqueles instantes em que saímos da terra. Em que percebemos que jamais seremos as mesmas. E nesse transe imposto, imediatamente fiquei pensando no quão aquela rainha maga era danada. Poderosa. Mas, especialmente, generosa. Até mesmo no momento de sua passagem, Azoilda, forte e frágil, teve o cuidado de articular teoria e prática, fazendo-nos “ver, ouvir e sentir” – verbos aos quais ela dava significados próprios – umas às outras em círculo. Acho que isso tudo tem a ver com uma frase que ela gostava muito de dizer. Estranhamente é uma das poucas guardadas em minha memória: “a invisibilidade é a morte em vida”. Até seus últimos instantes na terra, Azoilda recusou a invisibilidade para si e para nós. E no reconhecimento de que as identidades são relacionais, justamente num texto sobre cuidados entre mulheres, é Candeia, um homem negro que, a despeito de todos os seus machismos, em poucas palavras revela o grande segredo de Azoilda: “extraio o belo das coisas simples que me seduzem”.[5]


[1] hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

[2] Evaristo, Conceição. "Da grafia desenho de minha mãe um dos lugares do nascimento da minha escrita". Disponível em:
http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/2012/08/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos.html Acesso: 03/09/2015.

[3] Inserido nas ações e programas promovidos no âmbito da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o projeto caracteriza-se por seu teor educativo de valorização da cultura afro-brasileira. Em consonância com o inidicado pelas DCN’s-04, isto é feito por meio da produção e distribuição de programas audiovisuais para profissionais da educação básica, que antes de receberem o kit pedagógico, passam por um curso de formação relacionado à temática. Fruto de uma parceria entre o MEC, Fundação Cultural Palmares, Canal Futura, Petrobras e Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (CIDAN), o A Cor da Cultura, iniciado em 2004, ofereceu cursos de formação para mais de três mil educadores em estados como Bahia, Ceará, Manaus, Mato Grosso, Recife e Rio de Janeiro no ano de 2011. Ver:
www.acordacultura.org.br Sobre "pretagogia" cf.: SILVA, Geranilde Costa e. Pretagogia: construindo um referencial teórico-metodológico de matriz africana para a formação de professores/as. 2013. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2013. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/7955 Acesso: 01/11/2015.

[4] Letra da música "Purificar o Subaé/cantiga para Janaína", de Caetano Veloso. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/maria-bethania/purificar-o-subaecantiga-para-janaina.html Acesso: 23/11/2015.

[5] Esta frase encontra-se publicada em Gabriela Buscaccio. A chama não se apagou: Candeia e a Gran Quilombo – movimentos negros e escola de samba nos anos 70. Dissertação (Mestrado em História), UFF, 2005. Ela foi retirada do manifesto de fundação da Escola Gran Quilombo, escrito por Candeia e João Baptista M. Vargens. Ver a este respeito: Candeia – Luz da Inspiração, Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Música, Divisão de Música Popular, 1987. Esse manifesto foi escrito pelo próprio João Baptista Vargens na época da fundação da escola. A Gabi, grande amiga e historiadora, gratidão por me por me fazer conhece-la.

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