quinta-feira, 3 de dezembro de 2015


Sobre feminismo negro, educação, liberdade e as imoralidades da história: reflexões de uma mãe preta no mundo dos brancos

Ia ser um pequeno post no FB, mas acabou virando uma reflexão maior. Recuso-me a ver apenas com os olhos e essa recusa me faz ter vontade de escreviver.

Cena 1: Quando comecei a fazer aulas tinha dezessete anos. Minha primeira experiências foi com jovens meninos, todos negros, cumprindo medida sócio-educativa na Fundação São Martinho, bem ali na Lapa "do lazer". Tinha muito medo, principalmente pelas assimetrias de gênero visíveis e expressas em manifestações de desejo, proximidade física e muitas cantadas. Acho que foi uma daquelas situações que se eu parasse para pensar não iria. Então que bom que simplesmente fui. Com aqueles meninos, aprendi o quão insustentável é a ideia de "dar aula". As aulas são feitas porque os espaços educativos são feitos por pessoas, seres humanos e se como educadora viramos às costas para tais pessoas, as expulsando da escola elas (eles) retornarão, dessa vez, com fuzis na mão. Durante alguns meses, conversamos muito, cantamos, dançamos e lemos. Foi com eles que descobri a existência de Carolina Maria de Jesus. Incrível ter sido apresentada a esta mulher por meninos negros, "menores infratores". Sei lá porque tudo isso estava adormecido em minha memória. E agora, com o genocídio de Costa Barros tudo volta à tona. Não lembro os nomes e sobrenomes de vocês, mas obrigada meninos! Seus rostos estão presentes em minha memória.

Cena 2: Dois anos se passaram e comecei a trabalhar fazendo aulas em um projeto numa comunidade em Costa Barros com mulheres em "situação de vulnerabilidade". Este ambiente foi mais intimidador que o primeiro. Estar frente à frente com minhas "semelhantes", todas mulheres negras numa situação abissal de desigualdade entre mim e elas. De fato, a percepção de meus privilégios de gênero e classe dentro de um mesmo grupo racial de "pretas" me ensinou a recusar a nossa homogeneização como simplesmente "negras". Muito cientes da sua condição, ao contrário do que a academia tradicional imagina, eu não estava lá "dando voz". Elas tiravam proveito da situação de serem "ensinadas" por uma adolescente negra bem intencionada. Não me davam atenção, conversavam enquanto eu falava, faziam perguntas impossíveis de serem respondidas. E eu insistia em continuar. Não dormia estudando, pensando possibilidades de conquistá-las, de fazê-las acreditar não que "outro mundo era possível" (nem sei se é), queria apenas que acreditassem em mim. Que eu estava ali e que poderíamos de alguma forma aprender nas nossas diferenças (e semelhanças). Bem, um dia deixei minhas "boas intenções acadêmicas" de lado e calei a boca. Uma delas assumiu o comando da turma. E durante três horas ouvi, ouvi, ouvi... Ouvi sobre não ter documentos, sobre ser negra e soropositiva, sobre amar e não ser amada, sobre ser mãe, avó e bisavó solteira. Ouvi também (e comi) receitas de comidas incríveis, que compartilhavam comigo. Ouvi sobre os ensinamentos que transmitiam aos seus filhos. Sobre o cuidado de pedir para sair mais cedo para levar as crianças até à escola. Acerca de pedidos de livros e filmes escritos por mulheres. Isso quer dizer que tudo que vi, ouvi e senti tem relação com viver a vida como processo. Tem relação com histórias que articulavam dor e alegria, violências e prazeres, afirmações e rejeições. Aprendi com elas que "agente" e "vítima" não são, necessariamente, antônimos. Aquelas mulheres estavam e estão ali. Eu estou aqui, na academia, morando na zona sul. Sendo confundida com babá ao mesmo tempo em que exploro o trabalho doméstico de uma mulher branca pobre, pratico Yoga e consumo orgânicos. Não tenho respostas. Só a certeza de que é necessário lidar diariamente com as contradições.

Cena 3: Sou preta dotora, mãe negra, de um menino preto. Ele não está em ascensão social. Já nasceu "classe alta". Na escola dele, que custa R$2500/mês e que também explora muitas mulheres, especialmente as negras, que têm o plano de carreiro restrito ao “topo” de "auxiliar". Ele é o único negro da turma. As famílias decidimos presentear as professoras com um álbum de fotos de nossos filhos. Uma das mães, gentilmente responsabilizou-se pela diagramação. Ao ver a imagem, meu coração sangrou. Havia crianças negras. Elas estavam lá. Com traços disformes, todas iguais, variando, de forma controlada, apenas as roupas. No arenoso terreno de convivência no mundo dos brancos, perguntei suavemente sobre o que achavam da imagem. Linda, linda, linda, representa a "diversidade do Brasil". Só que não. Expliquei, expliquei, expliquei que não, da forma que as pessoas brancas exigem nos ouvir, ou seja, "pedagogicamente". Este pedagogicamente é uma premissa de cordialidade imposta pela casa-grande. E tenho diariamente de aprender a mediá-la, afinal se queremos conquistas não dá para ser Pé-na-Porta em tempo integral. A despeito das experiências como autora de livros, artigos, avaliações em Planos Nacionais do Livro Didático, as famílias brancas afirmavam convictamente: "não achei a imagem racista. Não vejo racismo nela". "Trata-se de arte primitiva". Para mim deu, "não sou obrigada". Peço que retirem as fotos do nosso filho do livro. Afinal, aquela imagem não nos representa.

Cena 4: O mundo realmente é interseccional. Chega um homem preto, marido e pai do filho preto, e pede "gentilmente": pessoas, vamos aproveitar a oportunidade de educar nossos filhos de outra forma... Basicamente, os argumentos utilizados foram os mesmos que os meus. As mulheres brancas ouviram, acolheram e respeitaram a fala masculina. O falo de um único homem. Um falo preto que se manifestou em uma conversa entre mulheres brancas e uma preta. Em termos familiares, o resultado foi positivo: a capa do livro foi mudada, a imagem retirada. No futuro, nosso filho não se verá como o "outro", ao menos naquele álbum. Os desafios interseccionais continuam.

Cena 5: Um dos grupos da turma da Prática de Ensino de História da UFRJ, composto apenas por homens, escolheu estudar a trajetória da ativista camponesa Josefa Paulino da Silva. Eles começam a apresentação anunciando que seu "lugar de fala" de homens não nos isentava da curiosidade de conhecer e aprender com a história daquele mulher, que até então eu desconhecia a existência. Já eram quase dez da noite e a turma permanecia sentada ouvindo a história obscura daquela mulher:

"Meu irmão me deu uma família (...). Na casa dessa família, eu era muito judiada, muito desfeitada. Com 12 anos eu dei problema na cama, muitas vezes as crianças faziam de mim de gato e sapato, me arranhavam os braços , com talo de coco, muitas vezes escorria sangue, e eu não podia fazer nada (...). Uma vez o marido entrou na porta e me deu uma surra em baixo do chuveiro (...). Eu fui muito sofrida, nunca frequentei a escola".

(...)

Conheci o José Pureza e nos casamos e viemos aqui para o Rio (...). Meu marido se filiou ao Partido Comunista Brasileiro e se encantou com a palavra "aliança-operário-camponesa" (...) Ele cismou de ir pra roça (...). Eu tinha uma raiva da roça porque eu vi como foi que minha mãe morreu, minha mãe foi enterrada numa rede que eu nem sei se foi com rede ou se foi jogada lá no buraco (...) e eu já estava vendo o meu futuro indo pelo mesmo caminho que de meu pai e de minha mãe, porque eu não queria viver de roça e meu marido foi justamente pra roça depois de ter uma profissão tão boa".


(Depoimentos de Josefa Paulino da Silva. In:"Josefa: uma mulher na luta camponesa", documentário de Roberto Maxwell e Luiz Claudio Lima, 2012. Conforme ressaltado pelo historiador Felipe Alvarenga, o sobrenome Pureza foi "naturalmente" atribuído a Josefa devido ao casamento com o ativista José Pureza. Seu nome de batismo é Josefa Paulino da Silva).

Após algumas falas, pergunto. E para vocês homens, como a história de Josefa ajuda a se repensarem em seus privilégios: "Giovana, como homem branco tenho certeza de que não passaria por este tipo de situação". "A inserção no movimento social não nos isenta de reproduzir preconceitos". "Foi com as feministas com as quais tive contato ao longo da vida com que aprendi os ensinamentos mais relevantes".

Imoral da História: Tudo isso que contei aqui reforça o temor que me acompanha todos os dias. Sou mãe de um menino negro. Poderia ter sido com meu filho o que aconteceu com os meninos de Costa Barros. E que tenhamos a sabedoria para educá-lo e mantê-lo vivo, oferecendo ensinamentos que não o tornem um "amigo secreto" no futuro. #educaçãoeliberdade




Imagem de "Arte Naif", proposta como capa do álbum.

3 comentários:

  1. Gi, tenha certeza q as suas aulas mudaram a concepção de muitos de seus alunos. E q seu trabalho funciona como uma corrente. Se, pelo menos 10% dos seus alunos guardarem no coração e fizerem aulas tão significativas qto a sua por esse mundão, mais pessoas vão mudar suas visões de mundo. É trabalho de formiguinha, mas acaba virando meta de vida. Estou nos EUA, longe das salas de aula, mas não por isso abandono minhas convicções de feminista interseccional. Fui em uma exposição sobre raças por aqui com o João e o chefe dele: homem, branco, norte-americano e conservador. Ele veio me perguntar se eu já tinha sido tratada com preconceito nos EUA. Eu disse q tirando a imigração, não. E ele quis usar isso como ponto de partida pra contra-argumentar a exposição. Mesmo fora da sala de aula, fiz uma aula. Usei os elementos da exposição e, pedagogicamente (por conta das relações de poder existentes entre nós), refutei tudo q ele tava dizendo. Saí com o coração leve por não ter deixado pra lá.
    Gi, infelizmente seu temor tem fundamento. Mas seu trabalho faz com q a sociedade se transforme aos poucos. Tenho mt orgulho de ter feito parte da sua turma e poder dizer q aprendi mt com vc.
    Um beijo enorme!
    Vanessa

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  2. Gi, tenha certeza q as suas aulas mudaram a concepção de muitos de seus alunos. E q seu trabalho funciona como uma corrente. Se, pelo menos 10% dos seus alunos guardarem no coração e fizerem aulas tão significativas qto a sua por esse mundão, mais pessoas vão mudar suas visões de mundo. É trabalho de formiguinha, mas acaba virando meta de vida. Estou nos EUA, longe das salas de aula, mas não por isso abandono minhas convicções de feminista interseccional. Fui em uma exposição sobre raças por aqui com o João e o chefe dele: homem, branco, norte-americano e conservador. Ele veio me perguntar se eu já tinha sido tratada com preconceito nos EUA. Eu disse q tirando a imigração, não. E ele quis usar isso como ponto de partida pra contra-argumentar a exposição. Mesmo fora da sala de aula, fiz uma aula. Usei os elementos da exposição e, pedagogicamente (por conta das relações de poder existentes entre nós), refutei tudo q ele tava dizendo. Saí com o coração leve por não ter deixado pra lá.
    Gi, infelizmente seu temor tem fundamento. Mas seu trabalho faz com q a sociedade se transforme aos poucos. Tenho mt orgulho de ter feito parte da sua turma e poder dizer q aprendi mt com vc.
    Um beijo enorme!
    Vanessa

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