sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Chá de sumiço que nada minha gente, é muito trabalho mesmo! E quanto mais labuto, mais ideias pipocam, mais vontade de escreviver dá e menos tempo sobra ... Mas como tempo também se cria, a retomada foi escolhida a dedo. Situando: em 2011, tive a grata oportunidade de trabalhar no curso de formação continuada em reeducação das relações étnico-raciais, destinado a professores e professoras do Cepe, uma linda escola construtivista, na charmosa cidade de Miguel Pereira. Coordenado pela minha grande amiga, a pedagoga Antonia Ceva, o projeto deixou saudade. Como fruto da experiência, no dia 20/09, estive na Feira Literária de Pati do Alferes. Organizada pela equipe docente do colégio, em parceria com a prefeitura do acolhedor município, a Flicepe e a Antonia convidaram a mim e à Conceição Evaristo para a mesa "Escrevivências de mulheres negras". Compartilho, a seguir, ideias escritas e lidas por uma preta historiadora que, com a ansiedade típica das fãs, subiu a serra para conversar com uma preta literata de primeira linha.

A educação e as negRas: uma homenagem a Conceição Evaristo

Passei as últimas três semanas angustiada, acompanhando ao longe as reflexões de inúmeras mulheres negras sobre “Sexo e as negas”, que teve seu primeiro episódio exibido na terça-feira, 16/09/2014, por volta das 23h. Reza a lenda que o programa inspirou-se na série novaiorquina Sex in the City, dedicada a narrar os encontros e desencontros amorosos de quatro amigas brancas e bem-sucedidas profissionalmente. A verdade é que por razões muito distintas as feministas brancas não se sentem representadas pelas mulheres maravilhas de quem não me recordo os nomes. Por outro lado, há de se afirmar que tão pouco a maioria de nós, feministas negras – cis e trans - estamos felizes de sermos retratadas nas figuras de um trio de mulheres negras que mais reatualizam do que rompem com estereótipos que têm nos custado muito caro. É fato que o programa global materializa um conjunto de “imagens controladas”, como diria Patricia Collins, que há muito tempo batem à nossa porta, negligenciando nossa história de construção de uma “feminilidade respeitável”, conceito que discuti na minha tese de doutorado. Hoje, nessa palestra eu ia falar sobre essas coisas todas, o que, reconheço, seria muito tranquilo como historiadora, especialista em gênero, raça e história das mulheres negras nas Américas. Mas mudei de ideia. De qualquer forma, como intelectual insurgente, não posso me furtar de sugerir que a TV Globo faça um seriado sobre o emocionante livro de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor, uma vez que ao que parece já adquiriu os direitos da obra. Que aproveite o centenário de Carolina Maria de Jesus para contar sua história como a de uma mulher trabalhadora afro-brasileira, permeada por dramas existenciais circunscritos à sua condição de migrante e favelada. Condição esta que Carolina abraçou como combustível para sua literatura altamente transgressora. Feitas as sugestões, recuso a suposta tranquilidade e obviedade de criticar “Sexo e as negas”, porque penso que temos que nos desafiar a sair de nossas zonas de conforto, discutindo temas que nos trazem mais dúvidas do que respostas. Então, minha conversa com vocês hoje, em boa parte estudantes do Ensino Médio, o que muito me deixa feliz, vai se dar a partir de um território que tenho me dedicado a explorar: as relações entre escola, universidade e ativismo. É nesse território que, inspirada pela potente obra de bell hooks – Educar para transgredir - tenho me dedicado a construir uma “pedagogia engajada”, que compreenda a educação como “prática de liberdade” e não de enquadramento.

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Passei a quarta-feira, 17/09/2014, em Curitiba, onde participei de duas palestras em um curso de formação de professores do projeto A Cor da Cultura. A mesa de abertura do evento foi composta por quatro mulheres negras intelectuais. E estar na plateia assistindo a tal cena foi impactante. Fiquei pensando o quanto o fato de termos nosso conhecimento reconhecido como científico é uma realidade nova, pois embora sejamos veteranas na produção de saberes, somos calouras em tê-los reconhecidos em espaços de produção de conhecimentos científicos. Se o poderoso quarteto afro-feminino cis da palestra A Cor da Cultura me impactou, eu transpus esse impacto para a Feira Literária de Pati do Alferes, a partir da seguinte pergunta: o que significa para a Feira incluir na programação oficial uma mesa intitulada “Escrevivências de Mulheres Negras”? A quem interessa conhecer essas “escrevivências”? Do meu lado, restou-me ainda decifrar enigmas. Como contá-las sem nos vitimizar? Como narrá-las articulando violência e dor, afirmação e empoderamento? Desde que a Antonia Ceva, amiga querida, grande especialista em valorizar tais escrevivências, fez-me este convite, várias trilhas passaram pela minha cabeça. E é um pouco desse caminho que percorro hoje com vocês. Para isso, vou retroceder a 1848, apresentando-lhes a história da preta Maria Leocadia, transcrita de um artigo do amigo historiador Henrique Espada:


Em 28 de janeiro de 1848, a preta Maria Leocadia contratou com o Capitão Fernando Antônio Cardoso. Nele, a liberta resgatava a dívida de um contrato feito anteriormente, no valor de 300$000 réis. Para pagá-los, contratava seus serviços por um prazo de dez anos, obrigando-se ainda:“...na qualidade de curadora natural de sua filha Joaquina, de idade de sete meses mais ou menos, a conservá-la em poder do credor durante o prazo [...] vinte anos, também a contar do primeiro do corrente mês, com a obrigação porém do credor alimentá-la, vesti-la e darlhe a precisa educação, de que não exigirá pago algum e ficará este favor compensado com os serviços que a dita menor deverá durante o dito prazo”.

Pensando nessa “preta liberta” que no século XIX discute os termos em que aceita trabalhar, investindo num projeto de liberdade que passa por garantir a educação que não teve para a filha, oferecendo em troca uma espécie de “reescravização” de si mesma, é curioso pensar o quanto a proposta de Leocádia é transgressora e engajada com a prática da liberdade. Também é curioso que, frente à sua história, contada dentro de uma mesa de e sobre – coisas diferentes – de mulheres negras, o primeiro nome que me venha a cabeça seja o de William Du Bois, sociólogo e historiador afro-americano do século XIX que, dentre outras coisas, é conhecido por divulgar o pensamento de que a raça negra era portadora de uma mensagem para a humanidade. Essa mensagem é lindamente discutida em As almas da gente negra. Assim, articularei a ideia de “mensagem” do intelectual ao conceito de “escrevivência” de alguém que sou muito fã e que está aqui do meu lado. A literata negra Conceição Evaristo. Com isso, pressuponho que enquanto escreviventes negras, você e eu temos uma mensagem não apenas a passar, mas a compartilhar. Então, peço licença à autora para apropriar-me de seu conceito para falar um pouco dos limites e possibilidades colocados para intelectuais negras que escolhem a universidade como espaço de ativismo. No belo livro já citado de bell hooks, a feminista afro-americana discute o quanto tinha medo de que sua entrada na universidade a confinasse eternamente aos muros da academia, com todas as grades de disciplinarização, produtividade e hierarquias, que mesmo involuntariamente, muitas vezes, contribuímos para reproduzir. Então, como uma professora doutora, meu movimento tem sido o de tentar transgredir os enquadramentos a que estamos sujeitas. Como historiadora, formadora de futuras professoras e professores de História, minha transgressão reside em trabalhar individual e coletivamente para criar formas de pluralizar o sentido de universidade, o que necessariamente tem a ver com meu “ponto de vista” feminista negro. Para ilustrar, rememoro que em maio deste ano, fui convidada por jovens negros a participar do evento de fundação do Coletivo Negro Carolina Maria de Jesus, sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ). Lá pelas tantas, entre debates sobre movimentos sociais, educação e racismo, a tal juventude negra interpelava-me sobre como a academia representa um lugar de embranquecimento. Apesar desse discurso ser um velho conhecido das discussões que envolvem acadêmicos e militantes negros, aquelas falas me tocaram fundo. Fizeram-me pensar justamente o contrário. Como a academia também representa um lugar de empretecimento, se quisermos colocar nesses termos. E, não por acaso, os jovens negros ali reunidos eram o maior exemplo disso. Argumentei que a academia também somos nós, e elas e eles, mesmo que não estivessem se dando conta, estavam fazendo o mesmo que eu. Tentar pluralizar os sentidos da universidade, criando um coletivo que proriza identidades negras afirmativas. Ainda que com muita propriedade tenha desenvolvido essa ideia com e para eles, a questão não é simples e objetiva. Tanto que eu mesma fui embora me perguntando: até que ponto o fato de eu estar ali como professora negra universitária é significado como transgredir? Qual a fronteira entre transgressão e excepcionalidade, se posso contar nos dedos as acadêmicas negras na Faculdade de Educação, onde estou lotada e no Instituto de História, de onde vêm licenciand@s que recebo anualmente? Naquela noite aprendi que para nós, professoras e professores, é difícil assumir que não temos o controle de tudo. E a tal jventude me fez pensar que é bom não o termos. Somente a partir dessa compreensão é que posso trabalhar para que meus alunxs entendam-se como sujeitos produtores de conhecimento. Praticantes de uma educação emancipadora. Essa missão (não no sentido de vocação e sacerdócio), mas de agenda política, é simultaneamente desgastante e prazerosa. Na condução das turmas de Didática e de Prática de Ensino de História, ela se desdobra no investimento em programas de curso nos quais em vez de dar aulas, eu faça aulas entendendo os sujeitos que ali estão como pessoas, antes de alunos e alunas. Isso fundamentalmente tem a ver com meu ponto de vista de uma mulher negra. Tem a ver com uma escrevivência produzida a partir de minha condição de mulher, cisgênero, feminista negra que entende a docência como uma forma de ativismo, qualificado tanto em investimentos teóricos, investigativos e também na valorização de saberes produzidos por grupos sociais que, por razões diversas, estão do lado de fora da universidade. E isso tudo é fruto de investimentos pessoais que são muito difíceis de serem postos em práticas, como mãe, esposa, escritora, professora. Nesse aspecto, o fortalecimento de redes intelectuais alimentadas pela produção de conhecimentos com base no afeto e na liberdade são essenciais. O primeiro espaço que destaco é o Degenera – Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros, coordenado pela minha amiga Amana Mattos. No Degenera, o feminismo é encarado como teoria que informa a “prática da liberdade”. Menos preocupadas com o Diretório de Grupos do CNPq do que com a formação de sujeitos críticos e reflexivos, as integrantes do grupo dedicamos as noites de segunda-feira a criar formas de articular tal literatura aos nossos sonhos e projetos de um mundo mais igualitário. Nesses Becos da memória, os trabalhos de Conceição Evaristo ocupam lugar especial no que acredito ser um conhecimento que liberta. E como eu acredito que as homenagens são para serem feitas em vida, quero dizer isso a ela pessoalmente. Conceição, as Vós Ritas, mas, especialmente, as Cidinhas-Cidocas, com seus vestidos brancos têm me ensinado bastante a praticar a liberdade em sala de aula. E conhecer pontos de vista sistematicamente silenciados e desqualificados pelos cânones, deve ser valorizado como uma grande possibilidade rumo à descolonização de nossas mentes. Embora muita coisa esteja sendo transformada, acredito que o “bom feminismo”, se é que posso falar assim, é aquele que desperta o desejo de falar sobre si, pensando em como o sobre si pode se tornar um sobre nós que aponte caminhos para ensinarmos a liberdade e não a obediência. Na condição de mulher negra 24h/dia, deparo-me cotidianamente com um grande desafio. Como ensinar pessoas de todas as raças e classes a ensinar a liberdade e não a obediência, se eu mesma fui historicamente entendida como serva da humanidade? Conceição tem a resposta ao lembrar que nossas experiências de empoderamento são construídas a partir de espaços de subalternidade. De posse desse saber e frente à precariedade da educação pública que, muitas vezes, vira um argumento para não se dedicar à licenciatura, como ensinar a futuras professoras e professores a apropriarem-se e praticarem a autonomia com vistas a criação de identidades docentes críticas e reflexivas? Como ensiná-los a escreviverem seus próprios currículos? Como ensinar que a falta de luz da palavra aluno encobre histórias múltiplas que compõem o assoalho das escolas? Não possuo receitas infalíveis, a não ser a crença na valorização de projetos coletivos, ilustrados em atividades como construção de currículos escolares, aulas de campo em quilombos e em pontos históricos da cidade do Rio de Janeiro, fabricação de diários de bordo... E quem sabe no próximo semestre eu seja corajosa e criativa o suficente para utilizarmos os celulares em sala de aula. Que me venha uma inspiração para um uso criativo, qualificado e comprometido com a liberdade. Acho que tudo isso que eu estou narrando tem a ver com um provérbio africano com o qual iniciei os agradecimentos da minha tese de doutorado. “Devemos cultivar nossos jardins”. A amiga Martha Abreu, (para mim, a melhor historiadora do mundo) esteve na banca. E naquele dia ritualístico, ela falou algo que me marcou muito. Que fazia tempos que não lia agradecimentos tão longos e profundos. Além dela, meu jardim da liberdade é composto por várias pessoas, que de formas múltiplas, impactam minha produção e prática docente. Num lugar especial do jardim, estão a Antonia e a Conceição, meu marido Álvaro (sentado aqui na primeira fila) e logicamente nosso filho Peri (que está na casa da vovó Nata). Mas estão também as professoras da educação básica que com suas escrevivências diárias, que gentilmente compartilham comigo, ensinam-me que a história é um processo. Que a história é um jardim. Que alunos são flores e plantas que devemos regar com muito amor e carinho, para que cresçam. Para que semeiem as ideias e práticas de liberdade. Isso tudo para que os tios Totós consigam perceber que nossos “sonhos dão para o almoço” e também para o jantar. E por falar em sonhos de jantar, chega ao fim mais um episódio da série “A educação e as negRas”.


Escrevivências presentes e futuras (da esq. p/ dir. Eu, Luana, Conceição e Antonia)


Pati do Alferes, 20 de setembro de 2014.

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