domingo, 22 de março de 2015

Tem sido cada vez mais difícil conseguir publicar aqui no blog. O bom dessa dificuldade é que ela se justifica pela quantidade de trabalho, que não pára de crescer. Dentre tantas coisas bacanas que estão rolando, destaco a criação, em novembro de 2014, do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras, que reúne mulheres pretas cis e trans, de diferentes áreas de conhecimento. Juntas temos nos dedicado a pensar caminhos para praticar a pesquisa ativista, valorizando a horizontalidade dos saberes acadêmicos, escolares e militantes. Em consonância com muitos que temos conversado em nosso coletivo, no dia 19/03/15, estive na Puc-Rio debatendo o legado da obra da feminista negra Lélia Gonzalez (1935-1994).  Tratava-se de evento de lançamento do Projeto Memória Lélia Gonzalez, coordenado pela Ong Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), patrocinado pela Fundação Cultural Banco do Brasil. Além de rever muitas pessoas queridas, a mesa foi uma ótima oportunidade para falarmos e refletirmos sobre nós, mulheres negras, e as escritas de nossas histórias. Compartilho com vocês minha escrevivência, lida em "O pensamento teórico de Lélia Gonzalez: revelando a história do Brasil em pretuguês", mesa que tive a honra de compor ao lado das intelectuais negras Helena Theodoro e Claudia Pons e da pesquisadora branca Antonia Ceva, coordenadora pedagógica da Redeh, que mediou os trabalhos. 


Programação do lançamento do projeto memória Lélia Gonzalez na Puc-Rio.

Sobre escravas, sinhás e desconstruções dos gêneros: diálogos com Lélia Gonzalez

Há poucas semanas, a Rede de Desenvolvimento Humano, nas figuras-amigas de sua coordenadora Schuma Schumaher, da coordenadora pedagógica Antonia Ceva, da historiadora Lívia Monteiro, da secretaria executiva Maria da Guia Felix, da contadora Katia Santos e de tantas outras mulheres – negras e brancas - que fazem aquela ONG na qual trabalhei e que foi fundamental para a consolidação da minha carreira acontecer, lançaram, no Centro Cultural Banco do Brasil, o Projeto Memória Lélia Gonzalez. Dentre tantas pessoas amigas que reencontrei e coisas bonitas que me saltaram aos olhos, uma delas me marcou profundamente. E foi a partir de uma “fala marcante”, proferida no garboso auditório do CCBB, que construí este texto. Após a exibição do documentário em homenagem a Lelia, Nilza Iracy, importante feminista negra de São Paulo, coordenadora de comunicação da ONG Geledés – Instituto da Mulher Negra, muito emocionada por rememorar a amiga, perguntou à plateia (quem sabe, simplesmente pensou em voz alta): “O que Lelia pensaria de tudo isso aqui?” A indagação de Nilza tocou-me tão fundo que não consegui prestar atenção em suas respostas para a própria questão. Ao considerar a espiritualidade altamente desenvolvida de Lélia, todas nós, mulheres negras aqui presentes, ou como ela gostava de afirmar mulheres “pretas brasileiras”, sabemos que a intelectual não somente esteve lá no CCBB. Ela também se faz presente aqui na Puc, sua morada por dezoito anos. Lélia estará sempre conosco e será sempre bom lembrá-la como disse uma de suas contemporâneas e companheira de ativismo, a cientista social Luiza Bairros. Sua presença dá-se de muitas formas porque como a feminista negra “arrasa quarteirão” Azoilda Loretto da Trindade ensina-nos: “somos muitas e aí reside nossa potência”. Mas afinal, “o que Lélia pensaria disso tudo se estivesse aqui?” Hoje, o aqui significa falar da Puc, universidade na qual foi professora, chefe de departamento, mas, sobretudo, formadora de pessoas. Provocada por Nilza, para colocar um pouco mais de camarão no feijão fradinho - comida de Oxum, a iabá que nos ensina a tecer estratégias  e a agir com determinação nas lutas cotidianas, usarei meu tempo para conversar com Lelia Gonzalez sobre questões que têm sido cruciais para a constituição dos movimentos de mulheres negras no Brasil, mais especificamente, no Rio de Janeiro, que sendo a minha cidade, meu lugar, sinto-me mais encorajada a falar sobre. Digo propositalmente movimento de mulheres negras e não “feminismo negro” simplesmente porque somos muitas. Há, por exemplo, formas de ativismo como a Afrikana Womanism, seguida por intelectuais negras da minha geração como Lua Nascimento e Obá Negraline, que defendem uma perspectiva de construção identitária em harmonia espiritual com os pares masculinos. Companheiras de jornada, elas praticam uma filosofia centrada no reconhecimento de nossa descendência africana. Também não posso deixar de mencionar outras pretas, que assim como Lua e Obá, integram o Grupo de Estudo e Pesquisa Intelectuais Negras. Para além de nossos processos de auto-nomeação, pretas como Janete Santos Ribeiro, Marta Muniz Bento, Célia Cristo, Claudielle Pavão, Fabiana Lima e Alessandra Pio (as duas últimas aqui presentes) são a constatação da pluralidade de expressões que escolhemos para nos auto-representar fora e dentro do grupo – um espaço em consolidação, que valoriza os diálogos horizontais entre saberes acadêmicos, escolares e ativistas em busca do fortalecimento de mulheres negras cis e trans. Quando vejo o quanto as práticas de liberdade das intelectuais negras nos empoderam mutuamente, percebo que isso tem muito a ver com Lelia Gonzalez. Uma Lelia que teimou em conjugar feminismo e negritude. E, em parte, é por isso que hoje estamos aqui. Em parte, porque Lélia tem seus méritos. Todavia, nós também temos feito nossos deveres de casa, dando continuidade a um trabalho iniciado bem antes dela, de Beatriz Nascimento, Rosália Lemos, Edmeire Exaltação e outras pretas que fazem a minha cabeça, como minha amiga aqui presente a socióloga Elizabeth Vianna do Espírito Santo. Nossa labuta iniciou-se com a travessia nos tumbeiros, que, por estarmos em momento de celebração, escusa de descrições mais aprofundadas. A travessia ou middle passage, como chamamos na historiografia, é o marco histórico no qual, com licença do anacronismo, iniciaram-se as assimetrias raciais entre brancos e negros. Noutras palavras, o processo de desumanização que sempre nos recusamos a aceitar. Na perspectiva eurocêntrica que impregna a nós, nossas escolas e nossas mentes isso é chamado de contraste entre civilizados e selvagens. E, nesse contexto contrastivo, a constituição da figura da mulher negra vivenciou danos imensuráveis, que ainda hoje tentamos reparar, ou melhor, transformar. Ao pensar numa perspectiva histórica, não há como não me remeter à categoria de “amefricanidade”, cunhada por Lélia em busca de explicações sobre as potências que carregamos como “pretas” e indígenas. Pretas, uma alcunha imposta violentamente por traficantes, atravessadores, senhores e sinhás da casa-grande para homogeneizar nossas muitas faces. Nossas muitas potências. Ao mesmo tempo, a história mostra que temos sido hábeis e perspicazes para sermos pretas da maneira que achamos que temos de ser. Afinal, se a categoria da moda é sororidade, façamos uma sororidade sincera. Uma irmandade entre todas as mulheres independente da raça, da classe e do gênero, na qual nossas “irmãs” brancas precisam convir que têm muito o que aprender conosco. As pretas, mestras na “arte de subverter”. Surpreendentes subversões como a da história que passo a ler e que arrancam sorrisos nos cantos de nossos lábios, pretos:
E foi assim durante quatro ou cinco dias, enquanto à noite, até que fosse necessário as pretas da casa me ensinavam português, como também o Tico e o Hilário, com quem eu brincava de vez em quando. Eu já entendia quase tudo o que falavam e não foi muito difícil começar a falar também. Não tive a menor dificuldade em me comunicar com a sinhazinha quando ela finalmente conversou comigo, mostrando uma boneca e dois vestidos, um amarelo e outro branco, e perguntando qual deles eu preferia. Eu apontei o amarelo, mas foi o branco que ela colocou. Na mesma tarde, ela estava sentada no degrau mais baixo da escada que levava da varanda ao jardim, com a Antonia no degrau de cima, às suas costas, penteando o cabelo cor de milho. Eu apenas olhava quando ela me chamou, tirou o pente das mãos da Antônia e colocou nas minhas, pedindo que eu continuasse o trabalho da outra. Primeiro tive medo de tocar os cabelos dela, de machucá-la com o pente, mas logo gostei da suavidade que tinha entre as mãos. Primeiro passei os dedos, sentindo os fios deslizarem entre eles como as franjas de um lenço que a Sanja, a filha da Titilayo, tinha ganhado de um marinheiro com quem se deitara. Acho que ficamos ali durante horas, eu mexendo no cabelo dela e nós duas olhando o mar além do jardim, além da areia branca. A partir daquele dia, só eu escovava os cabelos da sinhazinha, sempre inventando um jeito diferente de prendê-los, com fitas, grampos ou em tranças, que ela tentava repetir nas bonecas. Foi por isso que tive permissão para pegar nelas, porque a sinhazinha Maria Clara não conseguiu copiar um penteado com tranças e pediu que eu o fizesse. Os cabelos das bonecas eram quase tão macios quanto os dela, e ficávamos o dia inteiro naquilo, fazendo penteados e trocando as roupas para combinar, a sinhazinha sempre pedindo a minha opinião. Opinião que ela não aceitava, logo percebi e passei a dizer o contrário do que realmente achava para que, ao me contrariar, ela fizesse o meu verdadeiro gosto.[1]

Capa do livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, cuja primeira edição é de 2006.

Para quem não conhece o texto, trata-se da narrativa de Kehinde, protagonista do livro Um defeito de cor, escrito pela literata negra Ana Maria Gonçalves. Um livro que todas as pessoas – brancas e negras - precisam ler para conhecerem mais sobre si próprias. Para nós, mulheres pretas, a obra possibilita-nos acionar pontos de vista que, narrados na primeira pessoa de uma escrava “preta”, contribuem para aumentarmos nossa compreensão sobre as especificidades que carregamos em nossos corpos. Em nossas mentes. E, por consequência, em nossas histórias e nos saberes localizados que produzimos como no caso de Lélia:
É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês.[2]
Voltando a Um defeito de cor, quando li pela primeira vez o fragmento que narra os primeiros contatos entre Kehinde, tornada Luisa já sabemos como, e a sinhazinha Maria Clara, ele despertou em mim um sentimento que a própria autora do livro chamou de “serendipidade”:
Situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados. Ou seja, precisamos ter pelo menos um pouco de conhecimento sobre o que “descobrimos” para que o feliz momento de serendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos.[3]

Foto tirada pela amiga e historiadora Lívia Nascimento durante minha fala. Aieieu mamãe Oxum!

A serendipidade da história vem de algo que como intelectuais negras, produtoras de conhecimento em mundos de trabalho distintos (escolas, universidades, hospitais, lares, ruas etc.), conhecemos bastante: a interseccionalidade entre gênero, raça e classe, inevitável na construção de nossas agências. Isso é muito bem explicitado por Lélia em insistentes bordões como “feminista, sim, mas negra”. Pensando nos motivos que nos reúnem aqui hoje, mulheres negras e brancas, é inevitável pautar essa questão. Qual preço temos pago ao nos afirmarmos como mulheres negras, colocando o “feminismo negro palcos da história”, título de muito bom gosto escolhido pela Redeh para nomear o evento de hoje? Os valores, de fato, são muito altos. As apostas em alianças, afetos, solidariedades e construção de redes maiores ainda. Entretanto, andarilhas atentas nas estradas que percorremos, muitas vezes nos deparamos com a placa “relação serva-senhora”, que nos indica as direções para onde devemos ou não ir. A “relação serva-senhora”, categoria da feminista afro-americana bell hooks, diz respeito também ao pensamento de Lelia, que dedicou anos de pesquisa para historicizar os mecanismos por meio dos quais o sexismo constrói hierarquias entre as mulheres com base na raça. Para nós, mulheres negras, a “serendipidade” que o pensamento de Lélia Gonzalez evoca é tão forte que devemos tomar cuidado para não cair na armadilha de que diante de tanta familiaridade não estamos a falar de conhecimentos científicos, mas de desabafos. Desabafos movidos por uma suposta agressividade “inerente” às mulheres negras, como ouvimos, muitas vezes, ao longo de nossa caminhada feminista preta. Lélia foi bamba ao serendipiar falando de nós, para nós e sobre nós. Passadas duas décadas da transformação em ancestral, o que me parece bem mais coerente com sua vida e seu legado do que a ideia de morte, nós, as “criadoras de caso” por excelência do feminismo, nacional e internacional (título sarcástico, cunhado por ela própria, em contexto específico e que denuncia a interseccionalidade de opressões a que estamos sujeitas) continuaremos criando casos. Seguiremos cobrando ao feminismo posicionamentos nas questões relativas à raça. Às responsabilidades da branquidade. De seus sujeitos pelos atos do passado. Mas não pára por aí. Precisamos olhar para dentro e para fora cobrando também posicionamentos mais contundentes no engajamento dos movimentos feministas na luta pela desconstrução dos gêneros. Pelo reconhecimento das especificidades referentes aos processos de construção identitária de mulheres trans. Seus corpos dissidentes forçam-nos a repensar a “função materna” tão bem pontuada por Lélia:
E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira, como diz Caio Prado Júnior. Essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês. A função materna diz respeito à internalização de valores, ao ensino da língua materna e a uma série de outras coisas mais que vão fazer parte do imaginário da gente (Gonzalez, 1979c). Ela passa prá gente esse mundo de coisas que a gente vai chamar de linguagem. E graças a ela, ao que ela passa, a gente entra na ordem da cultura, exatamente porque é ela quem nomeia o pai.[4]

Mesa "O pensamento teórico de Lélia Gonzalez: revelando a história do Brasil em Pretuguês" (da esq. p/ dir. Helena Theodoro, Antonia Ceva, Claudia Pons, Giovana Xavier)

Pensando no “pretuguês” de Lélia e nos processos de desnaturalização dos gêneros, discutidos por feministas negras trans como Dora Santana e Alessandra Makeda, percebo o quanto nossa condição intelectual negra confere-nos a oportunidade de fazermos uma das coisas que, assim como Lélia, mais gostamos de fazer: transgredir identidades, desestabilizando os lugares relacionados à nossa luta para sermos consideradas mulheres. Seja Feminista, Afrikana Womanist, Intelectual, tenho certeza que Lelia pensaria como Azoilda. Somos muitas, muitas negras - cis e trans. É nessa diversidade que reside nossa potência. E já que acredito que como muitas também podemos ser uma preta só, em momentos estratégicos, ninguém melhor que a própria Lélia para encerrar minha fala:
Além disso, o seguinte: sou negra e mulher. Isso não significa que sou a mulata gostosa, a doméstica escrava ou a mãe preta de bom coração. Escreve isso aí. Esse é o meu recado para a mulher preta brasileira. Na boa.

Lélia Gonzalez, s/d.






[1] GONÇALVES, Ana Maria. “Sinhazinha”. In: _____. _____. Um defeito de cor. São Paulo: Cia das Letras, 2006, pp. 79-80 .
[2][2] GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, pp. 223-244, p. 235. Disponível em: http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/247561/mod_resource/content/1/RACISMO%20E%20SEXISMO%20NA%20CULTURA%20BRASILEIRA.pdf Acesso: 19/03/2015.
[3] Um defeito de cor, p. 9.
[4] “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, pp. 235-6

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