quinta-feira, 26 de junho de 2014

Entre Rita Baiana e Bertoleza: uma ego-história

Vamos combinar que, embora comum, é muito ixtranho criticarem uma obra chamando-a de “datada”. Afinal, não seriam todos os livros produtos da época em que são escritos? Em meio à faxina virtual das pastas do laptop, deparei-me com minha Dissertação de Mestrado. Intitulada Coisa de pele: relações de gênero, literatura e mestiçagem feminina (Rio de Janeiro, 1890-1910), ela foi orientada pela poderosa feminista Rachel Soihet e defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFF. Cá está uma parte da introdução, “datada” de 2005.

Entre Rita Baiana e Bertoleza: uma ego-história

Foi na adolescência que li O Cortiço pela primeira vez. Além de bastante perverso, achei algo muito distante da minha realidade. Não fiz muitas retenções dessa leitura inicial, pois não fora fruto de interesse pessoal e sim de uma imposição do professor de Literatura Brasileira do primeiro ano do ensino médio.

Retomaria a leitura em dois outros momentos. Primeiro, em 1998, como estudante de graduação em Letras na Universidade Federal Fluminense. Minha preocupação, na ocasião, era analisar a escola literária da qual fazia parte Aluísio de Azevedo. Por outros motivos, ficaria novamente impedida de me deixar tocar, de sentir, de humanizar a leitura e de aproximá-la das minhas experiências cotidianas.

Quando da leitura mais uma vez (e não a última) já cursava a graduação em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A troca do curso de Letras por aquele de História talvez tenha aí uma explicação. Comecei a me aproximar e me apaixonar cada vez mais por História Social e mais especificamente pelas possibilidades de diálogo entre História e Literatura.

Daí para frente, o interesse pelo Rio de Janeiro imperial e republicano fez-me concluir que minha área de investigação teria que estar diretamente relacionada ao universo urbano do século XIX e precisamente com as relações de gênero e as identidades nacionais construídas a partir delas.

Hoje, posso dizer que a terceira leitura do romance foi um marco, pois abriu grandes janelas para o desenvolvimento de perspectivas pessoais e acadêmicas vinculadas à universidade e ao meu papel dentro e fora dela como mulher negra. Se na adolescência não fui sensibilizada pela narrativa de Aluísio de Azevedo, aos vinte e seis anos, percebo o quanto carrego internamente Bertoleza e Rita Baiana. Não se trata de crise existencial com herança juvenil. Para reconstituir esse processo de internalização penso nas perspectivas de Le Goff sobre a “ego-história”[1] que trazem à tona as interseções entre temas, objetivos, justificativas e escolhas intelectuais que consideram vida social e contextos envolventes.

Posso explicar melhor. As imagens construídas em torno das duas personagens desde a infância sempre estiveram comigo. Quando ainda no ensino fundamental era apelidada dos nomes mais ignóbeis pelos colegas de turma devido à cor escura de minha pele. Compreendo inclusive o processo histórico da minha não sensibilização inicial com a leitura do referido romance e seus significados.

A perversidade que detectei no primeiro contato com o romance também estava presente nas brincadeiras de pátio e nas piadas em sala de aula. Frequentemente fui identificada como a escrava presente nos livros didáticos. A saber, era a escrava Anastácia com seus olhos azuis tão próximos, mas completamente distintos de meus olhos negros. Apesar de nunca ter sido resignada e subserviente, eu percebo que, naquele momento, Bertoleza de alguma forma se confundia comigo apropriando-se da minha alma ao fazer com que eu me encolhesse no canto da sala torcendo para que a professora Gilsa não pedisse aos alunos que abrissem o livro nas páginas com imagens da escravidão, canonizadas em figuras caricatas de pai João, Anastácia e Zumbi dos Palmares.

Mais ou menos a partir dos dezoito anos, Bertoleza foi se diluindo, ou melhor, transmutando-se na figura de Rita Baiana, que, daí em diante, passou a tomar conta de minha alma que, mesmo assim, era permanentemente revisitada por Bertoleza. Continuei sendo apelidada por meus companheiros de classe e agora também pelos das mesas dos bares. Porém, ao invés de rirem, seus olhares recaíam sob mim com manifestações explícitas de cobiça e desejo, pois deixei de ser a “crioula suja” e alterei, ou melhor, alteraram o meu status para o de “demônio”. Descobria – em meio à angústia e à inquietação - que muitos deles disputavam o feitiço da negra bela e exótica que outrora tinha sido o "chimpanzé" da turma.

Dentro desse contexto envolvente, a combinação entre gênero e raça suscitou-me uma série de questões oriundas de uma contemporaneidade onde ser negro é estar em evidência desde que para atender os interesses da classe hegemônica (e suas representações) e reproduzir ainda mais as ideias de identidades sociais e práticas negras ligadas intimamente ao erotismo, à sexualidade e aos essencialismos culturais latentes.

A naturalização das Ritas à frente das baterias de escolas de samba devido aos “seus mágicos movimentos de cobra amaldiçoada”[2] assim como a das Bertolezas penduradas nas janelas dos arranha céus limpando vidraças, varrendo o chão de museus, escolas e restaurantes e, ao final do dia, disputando um banco no trem para descansar seu corpo exausto me fazem entender porque ainda com dezesseis anos eu conseguia enxergar a perversidade presente nas linhas de O Cortiço e até hoje a sinto presente na minha história.



[1] LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1996.


[2] AZEVEDO, Aluísio de. O cortiço. Rio de Janeiro: Click, 1998, p. 63 (1a ed. 1890).

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