quinta-feira, 19 de junho de 2014

O dia em que Rui Barbosa sorriu (ou chorou?)

Maio, mês das mães, mês das noivas, mês do trabalhador. O mês cinco tem se tornado cada vez menos o mês da abolição da escravidão, o mês de aniversário da lei Áurea. Isso tem a ver com um monte de coisas. Dentre elas, o fortalecimento do dia 20 de novembro (morte de Zumbi dos Palmares) como data para celebrar a história de resistência da população negra, a partir da ótica dos movimentos sociais negros. Uma crítica forte e profunda à ideia da Princesa Isabel como a redentora. À lei Áurea como dádiva. Esse debate do 13 de maio X 20 de novembro é dos bons, briga de gente grande. Um dia falaremos... O fato é que o episódio que quero narrar ocorreu no mês de maio. Um maio, não custa lembrar, sempre oportuno para discutir as implicações históricas do pós-abolição no tempo presente. Pois bem, recebi por e-mail a programação de um seminário dedicado a discutir a abolição em perspectiva comparada, articulando a experiência do Brasil a de outros países. Achei a programação muito boa, reunindo a fina flor da nossa historiografia. Meu interesse cresceu quando me dei conta que havia uma mesa específica para discutir gênero e abolição. A primeira pessoa que vos fala foi tomada por um pensamento óbvio. Eu pesquiso mulheres negras no pós-abolição do Brasil e dos EUA, logo irei assistir. Convidei uma aluna que estuda o pós-abolição nos livros didáticos de História para ir comigo, que prontamente topou (confesso que ela chegou primeiro que eu. Quando se tem um filho pequeno, o simples ato de conseguir sair de casa é revolucionário, principalmente às 9 da matina!). Passada a saga matinal, finalmente cheguei. Vi vários rostos conhecidos, de pessoas queridas que vamos agregando às nossas vidas ao longo da trajetória acadêmica. Respirei, sentei, abri o computador. E quando comecei a prestar atenção na discussão percebi a "proeza" da boa e velha acadimia. Uma mesa sobre gênero e abolição composta exclusivamente por pessoas brancas, discutindo sobre experiências de mulheres negras. Como aprendi com minha mãe, as coisas sempre podem ficar piores. Olhei detalhadamente a composição do painel. Percebi que havia uma equidade de gênero (2 homens e 2 mulheres). Ufa, nós mamães nem sempre temos razão! Aí pessoal, cada dia que passa eu compreendo mais e mais minha amiga (ela não sabe que é minha amiga) do excelente blog "uma feminista cansada" (http://www.feministacansada.com/). Dá uma preguiça esse negócio de ser "minoria política" e ter que toda hora ficar falando a mesma coisa. Com tantos problemas para enfrentar, ainda mais essa obrigação de educar as pessoas. "Não se preocupem, nós sabemos contar nossas histórias. Da próxima vez contem conosco!" Com as novas tecnologias em alta, tenho pensado em deixar esta mensagem gravada no meu celular. Quando chegar a minha vez de falar, bastará reproduzi-la. Ah! Os trabalhos apresentados traziam discussões muito boas, feitas por historiadores e historiadoras de altíssimo nível. Já que está na moda falar de alteridade, propus-me o exercício de me imaginar participando de uma mesa sobre a história do holocausto com mais três colegas de profissão pretinhos da cor da noite e que não fossem judeus. De olhos bem fechados, a cena não vem. Não virá. A imaginação tem limites muito precisos de gênero, raça e classe. Essa mesa me remeteu a uma experiência dos meus tempos de doutoranda. Cursei uma disciplina sobre metodologia e teoria da história na qual a turma, dividida em grupos, tinha que apresentar seminários. Um dos grupos ficou com a história dos judeus, trabalhada a partir da famosa biografia do Primo Levi, que narra o cotidiano no campo de concentração de Auschwitz. Comoção total na sala. Semblantes cabisbaixos, olhos de ressaca, silêncio absoluto. Levantar ou não o dedo? Eis a questão. Pergunta simpática: por que não existe a mesma comoção com a história do tráfico de africanos para as Américas, em especial para o Brasil, onde desembarcaram aproximadamente quatro milhões de africanos? Tolinha eu! Mas a sorte é que sempre contamos com pessoas informadas, que podem nos ensinar o que desconhecemos. Foi com essa vibe que uma colega olhou no fundo dos meus olhos e disse com a mais sincera franqueza: "Se isso te interessa, estuda o assunto, faz teu seminário sobre isso". (isso = tráfico de seres humanos). O professor, também na vibe da ajuda argumentava: "isso não é estudado porque não tem muitos negros aqui na universidade". Cansaço pouco é bobagem... rumo à exaustão! Voltando ao evento de maio, na hora que a discussão foi aberta à audiência, pedi que explicassem melhor o que chamavam de "especificidades de ser mulher negra". Fiquei sem resposta, mas pelo andar da carruagem até achei bom. Seguindo a lógica da minha mãe, de que as coisas sempre podem piorar, poderiam ter seguido o exemplo de minha colega de turma, respondendo: "já que isso te interessa, defina você as especificidades". Em alguns casos, o silêncio é uma vitória! Na lógica "quebro, mas não envergo", fiz um breve comentário sobre a mulher negra como a "prima pobre" da historiografia da escravidão e do pós-abolição, haja vista os pouquíssimos trabalhos disponíveis. Este comentário disparou um debate muito comum na História. Uma discussão sobre a necessidade de separar ativismo social da pesquisa como garantia de investigação séria e de qualidade. Como feminista negra, acho que pesquisa histórica é ativismo, é posicionalidade. É olhar, reconstituir e contar histórias na primeira pessoa, talvez porque, para mim, que sou 24h por dia uma mulher negra, esse seja um caminho inevitável. Com tudo isso lembrei de Rui Barbosa. Abolicionista convicto, ele rotineiramente ostentava uma camélia ("confissão de fé abolicionista") na lapela do paletó. Apreciador da natureza, conta-se que marcou o jardim da sua casa com um pé de camélia, situado debaixo da janela de seu quarto de dormir. Resta saber se Rui teria esbanjado sorrisos ou derramado lágrimas se tivesse ouvido as reflexões sobre gênero e abolição na terceira pessoa.

7 comentários:

  1. Ai...a já clássica separação entre ativismo e academia...cansa isso e dá vontade de perguntar se eles (muitos acadêmicos) esqueceram simplesmente do ativismo dos marxistas britânicos e dos judeus q foram contar sua história. Parece que essa separação está destinada a uma parcela específica...e por vezes o que parece é...

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  2. A pretensão de imparcialidade da Academia por vezes me abisma, por vezes me indigna (mais essa segunda, é verdade). Vejo frequentemente dizerem "não pode uma mulher falar de feminismo, pq né? ela é também parte daquilo, ela não consegue falar sem contaminar a fala dela"; o mesmo pra negras, como você expõe muito bem. Mas não impedem homens de falarem de qualquer tema q nao seja feminista (se o feminismo é assunto de mulheres, qq outra coisa não é, entao a gte q dveria falar de tudo e eles só de feminismo, segundo a lógica deles); não impedem eurodescendentes de falar das imigrações da europa pro Brasil, nem judeus de falar... do holocausto. Incrível como a ~contaminação~ do tema só acontece com saberes dos quais a hegemonia não quer ouvir falar: não importa o que as mulheres têm a dizer, nao importa o que as pessoas negras têm a dizer; importa o que o homem branco cisgênero e heterossexual tem a ENSINAR. Obrigada, homem branco. Obrigada.

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  3. Realmente há muitas coisas em jogo na construção e legitimação dos saberes acadêmicos. A indignação em reconhecer a subjetividade como parte da pesquisa científica é parte de uma lógica de construção de conhecimento euro e masculinocêntrica, que compreende negros, mulheres, homossexuais, lésbicas, trabalhadores como objetos de estudo. A ideia de "dar voz" às vozes silenciadas, ideia tão importante para a consolidação da História Social da escravidão no Brasil. Atualmente tenho voltado a essa expressão, problematizando-a, pois por mais "transgressora" que tenha sido seu uso à época (anos 1980), ela também tem um enorme que de conservadorismo ao pressupor a concessão de fala aos grupos subalternos.

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  4. Giovana, que delícia de post. Aliás, que lindo blogue. E já começou com uma postagem das boas. Continue escrevendo, ansiosa por outras postagens. Um abração.

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  5. Gente, tô amando! É isso! Precisamos falar... agora, por nós mesm@s! Parabéns, Gi!

    Luara

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  6. Querida Giovana, eu tenho uma resposta muito boa para quem fala sobre esta questão de misturar o ativismo político diário com a história: quem nasceu negro não tem escolha: ou se torna ativista político ou se cala. Porque a cada dia ele desafia o ambiente em torno de si ao andar pela rua de cabeça erguida, ao entrar numa loja bacana, ao entrar num restaurante. Homens e mulheres negras, mas para as mulheres, como você mesma informou: o ato de sair de casa de manhã e ir para a academia é revolucionário. Eu tenho visto muitas dessas “mesas brancas” (me lembra sessão de espiritismo) na minha vida. Ai, ai… também ando cansada de ser ativista e mesmo cansada de me lembrar como as coisas são, na real. Veja você que, como sou um tanto quanto mais velha que você, quando entrei na graduação, em 1982 aos 17/18 anos, já tinha SEIS ANOS de trabalho (carteira de trabalho para provar), e tinha que escutar – ainda tenho, pobre de mim – o discurso intelectual sobre os trabalhadores e como os trabalhadores de fábrica pensam e agem, e sonham e isso e aquilo. E como os moradores de periferia e como os negros… E aí a coisa fica muito pior porque a cor da pele e o cabelo já nos “denunciam”, mas se acima disso eu ainda revelo o meu grande segredo: que fui peão de fábrica e que morei na periferia e estudei à noite para poder trabalhar desde a 6a. série, aí as pessoas simplesmente rejeitam, porque é realidade demais pra eles! A maioria das vezes fico com pena e escondo este meu passado de “colarinho azul” porque meus colegas e as minhas colegas não têm a menor idéia do que é a vida real dos negros e pardos no Brasil.

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  7. Adorei o texto Giovana! É impressionante como a "acadimia" é contaminada por esse pretenso discurso separatista e imparcial. Na psicologia, tradicionalmente separou-se a clinica da politica, ou da chamada psicologia social. Como se os sujeitos vivessem isolados do meio social e a realidade intrapsíquica não fosse constituída a partir das experiências externas, individuais e coletivas. No meio docente de educação básica também anda predominando esse discurso devido a greve. "A nossa greve não pode ser política". Oi? Não dá pra aturar. Toda luta é política. Cansa ter que acordar todo dia e "ter" que provar que se é boa o suficiente por ser mulher, negra. Por não ter o biotipo padrão. Por pertencer a uma geração de mulheres não aceita pelos homens e por (nossa?) sociedade machista. Às vezes nos endurecemos e nos masculinizamos, ainda que inconscientemente, para sermos aceitas. E como resposta recebemos medo, afastamento.Tantas lutas...

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