domingo, 24 de abril de 2016

Preta, insubmissa, do lá: é coisa fina sinhá?

A escrevivência de hoje brota do incômodo com a pretensa universalidade da palavra mulher, disseminada por #belarecatadadolar, hashtag surgida espontaneamente na internet após a publicação de matéria da Revista Veja sobre Marcela Temer, esposa do vice-presidente Michel Temer. Brota do compromisso com o feminismo interseccional e sua aposta metodológica de pensar o caráter de simultaneidade das opressões de raça, gênero, sexualidade, classe... Brota da decisão política de não aderir ao protesto porque, mais uma vez, assistimos à emergência de uma mobilização que desconsidera as implicações que a história do trabalho doméstico representa na vida de nós, mulheres negras, cis e transgêneras. Que fique escuro, não sou contra o protesto em si, que, aliás conta com a participação de muitas feministas negras e brancas as quais respeito bastante. Também reconheço que a apropriação da hashtag tem funcionado como uma contra-ofensiva frente às pregações em prol da tradicional família brasileira, corriqueiras na votação da Câmara de 17/04, que deliberou favoravelmente à continuidade do processo de impeachment da Presidenta Dilma Roussef no Senado. Compreendo a relevância desta catarse coletiva. Entretanto, levando em conta o momento político que vivemos de ameaças às conquistas alcançadas pelas classes pobres, tal campanha - se é que podemos considerá-la assim (já que não conhecemos as idealizadoras e os objetivos propostos) - requer mais cuidado e compromisso com a história das relações raciais no país. Como ressaltou Ana Flavia Magalhães Pinto ao explicar sua adesão ao protesto, precisamos investir na “politização dos espaços sociais”. Por isso, sou pretainsubmissado lá.

Fonte: Site da Uol

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Desde o estudo pioneiro da feminista afro-americana Kimberlé Crenshaw, sabemos da importância de pensar e agir contra as opressões de forma articulada, ou como se tornou moda falar de maneira intersectada. Digo moda porque observo que a interseccionalidade apesar de bastante citada, é pouco praticada nos círculos feministas. As contribuições inestimáveis de ativistas trans organizadxs em coletivos como o Prepara Nem, curso preparatório para o Enem voltado para pessoas trans e em grupos como Negros Blogueiros têm sido cruciais para o fortalecimento dos pontos de vista interseccionais em escolas,  movimentos sociais e universidades.

Fonte: Facebook

Ao longo de 2015, assistimos à emergência de #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto. O fato de ambas representarem campanhas que ganharam a cena nas redes sociais é inspirador para pensarmos na força dos feminismos. Em uma sociedade patriarcal como a nossa o fato de mulheres serem autoras de blogs, reconhecidas como intelectuais públicas com milhares de seguidorxs deve ser lido como uma política de enfrentamento ao machismo que tanto afeta a nossa existência, especialmente em momento político de conservadorismo diante de questões tão caras para nós como a legalização do aborto, a regulamentação da prostituição e o fortalecimento dos direitos de saúde e trabalho para pessoas trans. As barreiras postas para a conquista dessas e de outras pautas denotam que para que tal política de enfrentamento seja de fato insubmissa precisamos nos esforçar para ler e combater as opressões de forma interseccional. Um primeiro esforço nessa direção é articular individual e coletivo, refletindo sobre a natureza das fotos que escolhemos para postar no Facebook. Elas podem ser violentas para muitas de nós. Das que tenho acompanhado, a maioria traz como protagonistas mulheres brancas na pegação, tomando cerveja, dançando funk (“chão, chão, chão”), fazendo nudes na praia... Essas representações que já ganharam status de “clássicas” dizem respeito a experiências assimétricas de gênero e raça na sociedade brasileira. Certamente por isso, ainda que intelectuais negras, como MC Carol tenham aderido, a mobilização é a olhos nus hegemonizada por mulheres brancas de classes média e alta, dentre as quais muitas "famosas". E isso deve ser pautado. 

Fonte: Facebook

Precisamos falar sobre o fato que quando você branca dança funk até o chão vestida de noiva na festa de casamento você informa que naquela noite está tudo “dominado”, ops, liberado. Mas que no dia seguinte, quando descer para tomar café no Copacabana Palace com o maridão, será servida por uma copeira preta e o funk não fará mais parte da sua vida. Afinal, é “som de preto e favelado” e suas malas para lua-de-mel nazEuropa já estarão prontas. Também é necessário comentar que a sua foto enchendo a cara com cerveja orgânica será lida não como alcoolismo ou patologia “inerente” à raça negra, mas como um momento de exceção à vida recatada e previsível pela qual você se tornou conhecida, admirada e respeitada. Sobre o seu nudes, ele não fará com que te associem automaticamente à Mulata Globeleza os 365 dias do ano. Provavelmente, seus belos seios à mostra também não serão lidos como estímulo ou consentimento para passadas de mão na sua bunda com biquíni da Lenny. E sua foto dançando em roda com mulheres indígenas nuas da cintura para cima enquanto você, Letícia Sabatella, "protege" o corpo caucasiano vai ser ovacionada como um exemplo feminista. Um ícone da campanha ainda que as "nativas" do nada democrático círculo não tenham sido, ao que tudo indica, consultadas sobre a veiculação de suas imagens, que por respeito a elas não reproduzirei aqui. Eis o ponto a que chegamos: o corpo das mulheres pretas (e indígenas), o lugar destinado a eles no Brasil e noutras sociedades pós-escravistas. Este lugar de sexualização, objetificação e desumanização faz com que para muitas de nós os adjetivos “bela”, “recatada” e “do lar” sejam metas que queiramos alcançar. Há alguns anos publiquei um artigo no Cadernos Pagu que discutia justamente os sentidos transgressores que ideais aparentemente conservadores podem assumir dentro de processos de racialização de gêneros e de luta por "respeitabilidade".

E agora, que tal definirmos nos nossos próprios termos os “lás” nos quais queremos estar?

PRETA: Somos consideradas feias. Com nossos beições, cabelos duros e bunda grande ganhamos, quando muito, o status de “comíveis”. Em alguns casos, que podem ser exemplificados por atrizes negras contratadas pela TV Globo, somos "pretas bonitas", por sermos fitness, termos feições finas, pele clara e cabelo crespo com cachos "soltos", que “enrolam de verdade”. Em outros casos, mantemos relações afetivas durante anos com homens que não nos assumem por vergonha de nossa raça. Nas escolas públicas, multiplicam-se relatos de meninas submetidas a violências como escaldar a pele com água fervendo, acreditando que assim tornar-se-ão brancas. Entre as pessoas trans, os mais altos índices de violência e desemprego recaem sobre as negras. Por tudo isso e muito mais, a nossa luta tem sido a de conferir significados de afirmação racial ao ser bela muito além dos traços físicos, movimento atestado pela multiplicação de vlogueiras com canais de beleza negra na internet

INSUBMISSA: Somos vistas como despudoradas e indecentes. A sensação que experimentamos é que, a despeito do que se faça, tais estereótipos sempre nos rondarão, seja na forma da "empregadinha gostosa" ou da professora Globeleza da universidade. Duas imagens que por sinal dialogam com a crítica da de Monique Prada à preconceituosa e irreal separação entre mulheres que trabalham com o corpo. Mulheres que trabalham com a mente. Mente e corpo fazem parte de um mesmo todo, que somos nós em nossas muitas existências. A professora Giovana ao escolher com que roupa vai para a universidade usa seu corpo. Trabalha com sua mente (Que peça escolher para que eu seja chamada pelo meu nome e não por psiu? Para que eu seja reconhecida como professora e não como estudante ou auxiliar de serviços gerais? Que tamanho de saia garantirá que meus colegas não fiquem à vontade para me tocar enquanto falam comigo?). Todo este esforço intelectual e corporal da professora Giovana é experimentado pela prostituta branca Monique quando ela precisa decidir que roupa vestirá para ir trabalhar no encontro agendado com o cliente X. Mas este assunto – das relações entre mulheres e prostituição é matéria para “textão”, como  ouvimos por aí. O fato minha gente é que como pretas e indígenas não temos sido lembradas pela discrição, pelo recato e pela singeleza. A imagem produzida sobre nós é a da devassidão moral então não é absurdo pensar que para muitas a condição de "recatada” - de ser lida como respeitável - é uma experiência que gostaríamos, ao menos de saber como é. O olhar interseccional para o recato ajuda a pensar em privilégios de raça. Contribui também para percebermos que tal desejo para mulheres negras pode ter mais a ver com insubmissão do que com normatização. A regra para as pretas - estão aí as estatísticas que não nos deixam mentir - é a do trabalho doméstico, da terceirização, da liderança solo de famílias, das mortes por abortos clandestinos. Repito algo que já escrevi por aqui: na história oficial não somos nós as “mães gentis” dos “filhos deste solo”. 

DO LÁ: Tendo sido criada por uma avó que foi empregada doméstica boa parte da vida, cresci ouvindo e sendo ensinada a aprender os “serviços que uma menina deve saber desde criança” (lavar, passar, engomar, cozinhar, coarar roupa, encerar chão, arear panelas...). Com base nessa escrita de si, foi muito impactante ouvir da mãe de uma amiga branca que “para mandar na empregada” era “preciso” que “a gente soubesse fazer”. Em resumo: passei a vida sendo ensinada a trabalhar e obedecer às futuras patroas dentro de um destino esperado para mim e que minha própria família ajudou a romper. Já minha amiga branca recebeu uma formação das suas para dar ordens. Para ser patroa. E aqui vamos nos poupar da baboseira de secretaria ou ajudante. Estou falando de ordenar as empregadas domésticas toda sorte de serviços. Ordenar porque já faz tempo que decidi encarar a realidade de frente, parando de usar eufemismos suportados pelo racismo à brasileira e pela falácia da democracia racial. Aprendi isso com feministas como Rosário Amarante e Sueli Feriziani do grupo Maternidade Interseccional. A expressão “do lar” relaciona-se muito mais às patroas que exigem do que às empregadas que aprendem a servir. As categorias (indiscutivelmente machistas) de “excelente dona de casa”, “mãe de família”, “boa esposa” são altamente racializadas e racistas. Racializadas porque quando pensamos na “rainha do lar” quem vem à nossa cabeça é uma Fernanda Lima da vida, com seus gêmeos fofos e marido gato. Este um moço de sobrenome difícil, loiro de olhos azuis, "cozinheiro" do Gnt. Racista porque é a mesma Fernanda que como “boa mãe” corre em seu carrão para salvar as crianças da chuva e deixa para trás as duas babás negras, ao tradicional estilo "se fode aí". É a junção entre racialização (evidenciar a raça) e racismo (naturalizar a raça como marcador de desigualdade) que faz com que atrizes como Carolina Dieckman sintam-se à vontade para postar selfie no Natal com as empregadas domésticas de Regina Casé. Duas pretas trabalhando uniformizadas para servir o “lar” de uma “rainha” que em piada nacional de muito mal gosto tornou-se representante da biografia de milhões de mulheres negras brasileiras. Essas histórias - das quais eu - de novo - escolho não reproduzir as imagens por entender que se trata de exposição não consentida de trabalhadoras - baseiam-se em fatos reais e violentos  que esfregam em nossa cara a necessidade de autoconhecimento sobre o “lá” que nos é imposto e os “lás” que desejamos alcançar.
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Há muitas camadas por debaixo da tríade bela, recatada e do lar. Uma delas são as próprias intersecções entre matrimônio e prostituição e que, novamente, revelam experiências distintas de sermos mulheres. Afinal os casamentos “arranjados” e mediados pelos pais de moças como Marcela Temer relacionam-se com a prostituição de luxo, ao passo que nas periferias e sertões do Brasil, nossas meninas negras são “entregues” aos homens mais para obedecer (continuar a) do que para exigir de suas “criadas”. Aliás, ao que tudo indica, Marcela já se tornou grande mestra das exigências. 
Fonte: Twitter

Em termos interseccionais, gostaria de sentir na pele o mesmo empenho e entusiasmo para colocar na rua campanhas feministas para denunciar as violências a que estão sujeitas milhares de meninas nigerianas nas mãos do grupo Boko Haram. Para protestar contra os estupros das meninas quilombolas de Cavalcante, no Norte de Goiás  ou, para ficarmos com exemplos que permanecem atuais, torço para ver apoio à luta para que os frágeis direitos das trabalhadoras domésticas sejam respeitados. Para que os direitos das mulheres presas, das meninas cumprindo medidas sócio-educativas e de suas familiares - que sabemos a cor, o gênero, a classe - sejam respeitados. Caso isso não aconteça estaremos para sempre fadadas a reproduzir os feminismos no que eles possuem de mais conservador: o viés liberal e individualista.

Preta, insubmissa, do lá: é coisa fina sinhá?

P.S. Uma campanha pode significar muitas coisas a depender das sujeitas que dela participam e de suas experiências. Nesse sentido, #belarecatadadolar também faz circular imagens potentes e transgressoras como a de companheiras ativistas em protestos políticos. Cito o caso das companheiras do Movimento Mães e Crias na luta em prol da legalização do aborto. O de famílias de mulheres lésbicas e mães solos com seus filhos. Os de meninas estudantes protagonistas dos movimentos de ocupação das escolas estaduais do Rio de Janeiro assim como o das universitárias feministas que têm denunciado os estupros e demais violências machistas na Universidade Federal do Rio de Janeiro através do potente movimento #meavisaquandochegar. No dia 06/05, estaremos lá em Seropédica, a partir das 10h, para conversar em roda sobre "feminismos e a cultura do estupro na UFRRJ", apoiando esta luta que, de formas distintas, pertence a todas e todos nós.
Fonte: Facebook


Fonte: Coletivo de Mulheres de História (UFRRJ)






Um comentário:

  1. Bravo Gi!!!
    Voce está sempre vendo os outros lados da luta. E são tantas as lutas...Obrigadão.

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