“O feminismo branco
forjou-se nas costas das Mulheres Negras”.
(Feministas Negras
na Marcha de Mulheres - Washington, 21 de janeiro 2017).
Taís Araújo e Lázaro Ramos homenageiam Dona Ruth de Souza
Foto: Marcos Ferreira/Brasil News
Neste escreviver que abre os trabalhos de 2017, o
exercício será dedicado a narrar, sob o ponto de vista de uma historiadora do pós-abolição dos EUA, a linguagem de possibilidades trazida por O topo da montanha, que dizendo a que
veio escolheu como data de estreia para temporada carioca o 20 de janeiro – dia
de Oxóssi, orixá da caça e da fartura. A representatividade negra materializada
nos corpos e nas performances dos atores, na expressiva presença de público negro
e na mensagem que verdadeiramente tocou minha alma: “quem vive pelo amor, morre
pelo amor” serão os bordados de minha colcha.
Ontem foi o dia de lembrar
que em janeiro de 2009, assisti à posse do presidente Barack Obama no Centro de
Estudantes da New York University. Eu tinha 29 aninhos... Cheguei lá – minha primeira
viagem internacional - para realização de estágio de doutorado sanduíche. O
discurso We Can, a representatividade
da família Obama, o contato com pessoas de todas as partes do mundo, a família
dominicana que Janny – “irmã da alma”, ofereceu-me, as descobertas gastronômicas,
o aprendizado do Inglês em uma escola pública para imigrantes, na maioria
ilegais, foram experiências que mudariam para sempre o curso do meu rio...
Assistindo ao espetáculo no SESC Ginástico, emocionei-me. Agradeci à minha mãe Sonia por ter me
ensinado o sentido mais valioso de intelectual negra: viver com amor. Sonia era
uma mulher de amores. Ontem compreendi de forma mais profunda que o
amor e à devoção às palavras que vêm da alma constituem-se no principal elo da
nossa união.
A peça é estrelada por Taís
Araújo e Lázaro Ramos e inspirada no livro de Katori Hall, uma jovem de 25
anos, que transgrediu mitos e verdades, narrando como teria sido o último dia
de vida de Martin Luther King, o reverendo afro-americano, líder pacifista dos
direitos civis e Prêmio Nobel da Paz, assassinado em 04 de abril de 1968, na
cidade de Memphis, na sacada do Hotel Lorraine, aos 39 anos. Um crime legitimado
pela política de segregação racial e pela supremacia branca no país.
Pensar na totalidade do
texto, com forte investimento no resgate da imagem do Dr. King como um homem
comum, repleto de “fraquezas mundanas” e de Camae, a camareira, dona de um
discurso potente de humanidade Negra, faz lembrar do texto sagrado “Vivendo de Amor”.
Nele, a feminista afro-americana bell
hooks descreve de forma sublime o ato de curar a comunidade negra através
do amor:
Expressamos amor através da união do
sentimento e da ação. Se considerarmos a experiência do povo negro a partir
dessa definição, é possível entender porque historicamente muitos se sentiram
frustrados como amantes. O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram
condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento
espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos
reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade
de amar.
Estar em um teatro, espaço hegemonicamente branco e elitista, conhecendo uma história de protagonismo Negro na primeira pessoa é acessar o
“templo da justiça”, sempre lembrado por King. Olhar para a cadeira ao meu lado e ver um corpo preto igual nas nossas diferenças é restituir o
“verdadeiro significado dos [nossos] princípios”. Em uma cidade organizada para desumanizar pessoas Negras, cruzar as escadas e receber sorrisos e olhares de cumplicidade da negrada – de gêneros, classes, gerações, sexualidades diversas - é viver de amor.
Jornal Negro "A liberdade", São Paulo, 1920
Caderno interativo da peça O topo da montanha.
(nele as pessoas são convidadas a registrar suas referências negras).
Na incessante busca pelo
“oásis da liberdade”, a centralidade do ato de cuidar apareceu em detalhes que
passarão em negro para sempre nas nossas lembranças. As boas vindas contagiantes da atriz e do ator minutos antes de iniciar a peça. Os
tablets espalhados no saguão exibindo títulos da coleção de documentos históricos “Jornais da Raça Negra”. Um lindo caderno interativo, o qual espera-se seja preenchido com nomes de figuras Negras referências para as pessoas da plateia - nomes que poderão mais adiante ser incorporados à peça (ops, sem
spoiller!). A belíssima homenagem em vida à estrela de 94 anos, Dona Ruth Souza, fazendo-nos compreender – em lágrimas – o sentido prático de descer do palco. Tudo isso nos dá força para lutar contra o Alcaçuz nosso de cada dia e chegar às alturas. Como aprendemos com o Dr. King, do topo da montanha deixaremos
"a liberdade soar". Sigamos vivendo de amor!
O Topo da Montanha – Imperdível!
21/01 a 19/02
Av. Graça Aranha, 187 - Centro